domingo, 30 de julho de 2023

Melides, breve




a ribanceira caía ao mar
no topo um casabre demasiado bem
situado
para não ser clandestino

velhos estáticos
no meio o alemão com o cão
de roda

de tábuas de cofragem era
a mesa com garrafas de cerveja bebidas talvez
o costumeiro cinzeiro de lata

conversámos em inglês
vagarosos como o azul visto dali e cuja espuma
terei apontado à laia de versos num 
caderno que perdi

não era Verão ainda
o silêncio floria entre o pó a urze o medronheiro
o barro à volta do esgoto

a bicicleta apoiada no grelhador
a ferrugem que corrói o bidão amolgado
do litoral

Miguel-Manso

Maria Campaniça


Debaixo do lenço azul com sua barra amarela
os lindos olhos que tem!
Mas o rosto macerado
de andar na ceifa e na monda
desde manhã ao sol-posto,
mas o jeito
das mãos torcendo o xaile nos dedos
é de mágoa e abandono...
Ai Maria Campaniça,
levanta os olhos do chão
que eu quero ver nascer o sol!

Manuel da Fonseca
Pintura de António Galvão

Alentejano recoveiro de seu ofício


Pois, nessa tarde fria, vem à baila um homem de pelico, calçando botas de atanado, um homem metido consigo, recoveiro de seu ofício, que, depois de a muito custo aceitar um copo de vinho, nos desabafou parte da sua existência, com os braços erguidos: "Há quarenta anos que faço recados para as aldeias!"
- Tenho visto muito mundo, nestas andanças das aldeias, mas posso afiançar-lhe que nunca vi Inverno tão triste... Não vêm cantar às estradas os meus patrícios, perdeu-se a alma de outrora, é tudo uma dúvida... Ali fica a Igrejinha, uma terra gentil como uma charneca cor-de-rosa, cheia de trigo e de favas; mais para baixo, à distância do olhar de um maltês, fica a povoação de Lavre, com as suas ricas herdades, e Mora, com as suas ricas cortiças...
Por um rasgo de paz, tornei a encher o copo de vinho ao charnaquenho, meu irmão. Custosamente, só com a alegria do líquido, o homem conseguiu sorrir para a paisagem de Inverno.
- Está o tempo fusco, senhor. Nunca vi um Janeiro tão triste... - prosseguiu na sua voz cantada. - Vem aí a temporada dos ventos rijos. Na serra de Ossa nasce o temporal nalguma cova de ladrões, ou quem sabe se nasce das profundezas do mar salgado, a muitas horas de comboio daqui!...
Não havia dúvidas de que o homenzinho era mais um daqueles poetas que dão coragem às pessoas. No entanto, com uma réstia de incerteza, perguntei:
- Vossemecê faz versos?
- Eu? Que ideia! Não senhor, nunca fiz versos na minha vida! Quero lá saber disso! Só canto as modas de improviso e que os caminhos me ensinam. Veja que é fácil: anda-se por uma azinhaga e ouve-se o rouxinol, passa-se um alqueive e ouve-se a calhandra, o pintarroxo e a milheirinha. São nossos mestres desde a infância. E vêem-se as verduras das árvores a nascer todos os anos. Depois vem a chuva, o vento, o frio, a estorrina do sol, o céu misterioso e a existência que uma pessoa leva, e é isto que faz o Alentejo! E também falta o trabalho, sabe? E vem a fome disfarçada em almoços de ervas cozidas, catacuzes, poejos, vem a desgraça numa casa de campo. De maneira que se aprende a cantar. É isso mesmo que vossemecê vê. 

Antunes da Siva
Pintura de Joaquim Rosa


Corticeiros

https://www.youtube.com/watch?v=a7xyEYEQR9o


No silêncio ardente do dia parado,

Há lida de gente no denso montado.

Há troncos despidos, já lívidos, frios,

E troncos que esperam, em funda ansiedade,

Com gestos convulsos, de sonhos sombrios,

Em dor e silêncio, por toda a herdade.

 

Os pés descalços trepam ágeis,

Sobem…

O machadinho crava-se e segura,

Como se fora um croque de abordagem,

O homem

A subir, na faina dura.

 

E há pasmo na canícula.

E há silêncio, de assombro, na paisagem!

 

– Troncos dilacerados!…

 

E lembra-me, assim vistos a distância,

– Os vultos a trepar pelos troncos gigantes –

Como, em contos de infância,

Cornacas dominavam enormes elefantes.

 

– Que troncos majestosos e inermes

Têm o ar daqueles paquidermes,

Lentos, laboriosos, resignados. –

 

Desses trágicos braços contorcidos,

Que mais tarde, a sangrar,

São a gala maior desta paisagem,

E, agora, estão gelados, confrangidos

Pela tortura sem par,

No pino da estiagem,

Vão homens rudes, escuros e suados,

Lenço metido sob o chapéu largo,

Arrancando aos bocados,

Em ferra luta obscura,

Com qualquer coisa de febril e amargo,

A epiderme dura.

 

– Oh, velhas árvores dos montados!.

 

Francisco Bugalho(1905-1949)

Pintura de Dórdio Gomes


Arvores do Alentejo

Horas mortas... Curvada aos pés do Monte
A planície é um brasido... e, torturadas,
As árvores sangrentas, revoltadas,
Gritam a Deus a bênção duma fonte!

E quando, manhã alta, o sol posponte
A oiro a giesta, a arder, pelas estradas,
Esfíngicas, recortam desgrenhadas
Os trágicos perfis no horizonte!

Árvores! Corações, almas que choram,
Almas iguais à minha, almas que imploram
Em vão remédio para tanta mágoa!

Árvores! Não choreis! Olhai e vede:
Também ando a gritar, morta de sede,
Pedindo a Deus a minha gota de água!

Florbela Espanca
Arte de Ana Lima


sexta-feira, 21 de julho de 2023

A casa iluminada



Olhai honestamente para o vosso passado
escondido da rua pelos arbustos
oferecendo-se aos pedaços
naquilo que o rasurado quis extirpar
nos trechos sem relação que vos assaltam no sono
no desabamento, na estranheza
outro nome possível se transcreve

Considerai as vossas memórias pré-históricas
as primeiras declarações de amor pronunciadas
com lábios de sangue
a inervação magnética do vosso coração
dentro da caixa anatómica
dentro de uma caverna
na jangada que vos leva

Aprendei a observar com delicadeza
a terra inóspita antes de passar
a face molhada por uma chuva repentina
e o seu invencível sentido

Somos ainda os nativos, os mais remotos

Assim que chegarmos ao mar alto
e perguntarmos por que razão
seremos baixados por cordas
à casa demolida ainda iluminada

José Tolentino Mendonça
Pintura de Paula Rego


sábado, 15 de julho de 2023

Autografia

Tenho a cabeça cheia de fábulas.
Basta olhar para uma porta de bandeiras
altas, ela abre-se, e no seu vão surge um
noivo antigo trazendo ao colo uma noiva
antiquíssima, branca e virgem, com um
diadema nos cabelos.

O amor que faço descer do tecto canta
do lado do Atlântico canções com trompete
que vêm de New Orleans ou de uma outra
cidade do Mississippi ainda mais longínqua.

Ele ainda não a pousou no leito e eu
continuo com a cabeça cheia de fábulas.
A porta deveria fechar-se, não consigo fechar 
a porta - Silêncio entre fechar e abrir esta porta.

Decorrem oito décadas, eu seguro os batentes
com toda a força dos meus pulsos, mas aí vem
a morte caminhando, munida de ossos e de foices.
Delicada posição para aqueles que ficaram além
do limiar da porta. São os meus avós maternos
quando ainda não tinham feito os filhos.
Levanto a pistola que não tenho e abato a morte...

Os netos do noivado regressam de muito longe
para uma celebração em família, um século mais tarde.
Só agora a noiva deixa cair os sapatos no soalho
e as meias ainda são de fio-de-escócia como 
muito antigamente.

Tenho na cabeça um relógio de adiar a morte.
Possuo uma chave que fecha e abre as portas
sobre o peito. Rodo a chave sobre as fábulas.
quando eu decido, ninguém morre.

Entrego estas fábulas intactas aos filhos dos filhos
dos seus filhos, eles viajam de avião com as fábulas
nos braços, façam delas alguma coisa útil.

Lídia Jorge
Pintura de Graça Morais


domingo, 9 de julho de 2023

Memo

 

                        Jorge Carrion

Meu avô


o amor esteve ligado a ofícios, a trabalhos. À memória. Onde se inventa. E reconhece. Nunca a palavras:
.
Um copo de leite frio, tapado com um guardanapo, à noite, na mesa-de-cabeceira.
.
Meu avô a fazer barcos de cortiça, de casquinha de pinheiro, de balsa: caravelas, buques, traineiras, bacalhoeiros: alinhavam-se no alto do guarda-fatos, no mármore do aparador, nas mesas, por todo o lado. Esperavam a minha chegada. E eu ia de sala em sala, a abrir as portas, num rompante. E contava. Contava-os. Era uma contagem interminável. Havia sempre mais um barco escondido debaixo de uma cama, numa gaveta, no canto escuro da despensa. Meu avô acompanhava-me, silencioso. Silêncio aberto
o dele. 
Aberto para a minha alegria.
.
tocava a roda, e a roda girava. O barro parecia ter fome do seu corpo: apanhava-lhe os dedos, a mão, o pulso, subia-lhe o braço até o cotovelo como um animal ainda informe. E o cântaro surgia. Eu não me cansava de ver todas as manhãs a criação do mundo: os ruídos atenuavam-se: o trote dos machos, a rede das vozes, de um lado ao outro da rua. E, no sossego que se ia fazendo, o barro tornava-se um objecto, íntegro, a escorrer uma luz avermelhada, um muco, uma água de sangue, nas mãos daquele velho. Que, cheio de cautela, o pousava na tábua ao lado de outros.

Rui Nunes
Pintura de Eduarda Lapa

sábado, 1 de julho de 2023

O Jovem Mwando



De repente abriu os olhos para o mundo. Foi então que se apercebeu de que a floresta estava viva, os pássaros alegres, os ventos e as borboletas voavam felizes para o horizonte, ele é que olhava para o mundo com olhos fechados, olhos de morto, e todos os seres continuavam na dança da vida. Compreendeu finalmente que a vida é a dor e a alegria, a vitória e a derrota, a ofensa e o perdão, o amor, o ódio, e todos os contrários. O que seria a terra sem a presença humana? Se as mulheres morressem, quem daria luz à luz do sol? Que seria a vida sem os pássaros, árvores e flores? O universo não teria sentido, não existiria.
Revoltou-se contra as suas próprias atitudes. Homem que é homem deve saber resistir às vicissitudes da vida, pois todos os seres vivos têm as suas amarguras. As árvores sofrem da chacina dos homens, mas nunca deixaram de viver. As ervas sofrem do pisoteio desordenado de todos os bichos da selva, mas nunca se queixaram. Os animais mais fracos são o pasto dos mais fortes, mas nunca deixaram de se multiplicar. Os pássaros são aprisionados sem razão e até os montes sofrem das violentas bofetadas do vento.

Paulina Chiziane