sábado, 26 de janeiro de 2013

Oslo


Estou a lembrar-me - e com que sorriso de passado satisfeito! - daquela manhã de Março em que entrei no fiorde de Oslo, lá para trás, na névoa confusa dos meus 25 anos. Um companheiro de camarote que atravessara o Mar da Mancha e o Mar do Norte a rezar sôfrego durante horas e horas, com temor que o navio naufragasse em virtude da minha presença sacrílega de existir, veio acordar-me num alvoroço de gritos açodados: "Chegámos! Venha ver o fiorde! Venha ver o fiorde!" O fiorde, hem? Todos sabem o que esta palavra pesa de sabor mágico na alma dos portugueses - com música de Grieg. Pois tive a coragem de resistir ao encanto e voltar-me para o outro lado, no beliche ainda quente dos fantasmas da noite. E só decorrida meia hora, indiferente, barba feita, sem espreitar uma única vez pela vigia, condescendi em surgir na coberta para que as pedras do fiorde me contemplassem.
Desta maneira desembarquei em Oslo com a naturalidade de quem conhecia a cidade desde a fundação, apagado de propósito na turbamulta da Karl Johans Gate e pronto a aplicar à risca os métodos de viajar da minha lavra, juntamente com os conselhos herdados de meu pai e mestre de vida. Se bem me recordo, o meu primeiro acto em solo norueguês consistiu em penetrar na escada dum salão de fotografia para esmiuçar com atenção a beleza das mulheres... Para me lançar em seguida à procura do que chamo, com certa pompa de jeito metafísico, o segredo da cidade.
Não descobri o de Oslo, evidentemente. Como, anos depois, por mais que esgravatasse com os olhos, não desvendei o de Madrid que palmilhei de sol a sol, preso a este monólogo de desconsolo: "Sim... É uma cidade de beleza evidente. Cartazes de touros, avenidas amplas, edifícios monumentais, Museu do Prado, desenhos de Goya, cafés, esplanadas, gente em voz alta, bocas de ruído... Mas onde se esconderá o segredo último deste aglomerado de casa e gritos que não entendo? Em que urtigas na sombra de que pátio?... Em que nota de viola oculta?... Em que fundura de coração a bater?"

José Gomes Ferreira
http://www.youtube.com/watch?v=O0iLAmvZ1ZE

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Circo de cavalinhos


Naquele tempo, a gente morava na Moita Vaqueira, areias a perder de vista, e pinheiros e mato, sempre, e algum tojo a picar-nos os artelhos. A bem dizer, não era mesmo na Moita Vaqueira que a gente morava, mas muito lá perto, num sítio maneirinho e pobre, como todos nós, e dizer-lhe o nome não importa, porque ninguém ia encontrá-lo no mapa. Adiante. Eu ouvia falar muito na Feira do Ano, que era em Montemor(...)
Quando o meu tio das Franciscas vinha lá a casa é que mais se falava na Feira do Ano, e que haviam de lá ir um ano destes, falavam, falavam, num embevês de os mais pequenos ficarem muito dependurados de encanto. E de tudo o que eles conversavam só ficavam-me as pontas do nunca não visto, essas novidades que me davam a volta ao entendimento, a entrechocarem-se, negaceavam a minha tanta ignorância de tudo. Até que, pois, finalmente. E farto de não entender bem essas coisas, perguntei como pude, na minha voz de tatibitate:
- Tio, o que é o circo de cavalinhos?
O meu tio das Franciscas ficou a olhar-me um nadita de tempo, a cara redonda de sabedoria, contente, bonzão que ele era, sorrisoteiro como sempre, quando a gente lhe perguntava certos mistérios. E o meu tio mexeu a língua lá dele e pôs-se então a contar, explicadinho. Circo de cavalinhos é assim uma geringonça de andar sempre em de-roda, sempre, uma pessoa até entolece. Tem bancos corridos de madeira, girafas e zebras, cavalos pintados de todas as cores, e é por isso que se chama circo de cavalinhos. A gente entra e assenta-se num banco, ou amontoa-se em riba desses animais como se fossem mesmo a valer. E lá, numa cabina, há um homem que carrega num botão, e então aquela balhana começa às voltas e voltas, uma coisa por demais, até voltar outra vez a parar. E dá-nos um ventinho na cara que é uma beleza, por causa do galope dos cavalos e da outra bicharia, e dos bancos, tudo em corrida desembestada, e sobe-que-desce, e sobe-que-desce, é preciso a gente agarrar-se muito bem, quando não podemos trambolhar lá em baixo. As pessoas riem-se muito umas para as outras nessa alegria corrida, parecem mesmo palheiras soltas ao vento, ou pássaros fugidos nem sabe-se de quantos inimigos. Aquilo só visto se pode acreditar.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Monsaraz


16 de novembro
Como sempre, era já noite quando chegámos a Monsaraz. O largo da igreja, totalmente deserto e silencioso, com o pelourinho e as casas todas brancas em volta, parece sempre, à luz dos candeeiros, uma paisagem imaginária e irreal, um quadro inventado por um pintor. Ainda mais quando o grupo de cante alentejano ensaiava  no clube - há no mundo duas mulheres por quem tenho tanto carinho, uma é a minha mãe, outra a mãe do meu filhinho... - o som espalhando-se pela terra e depois até dentro da nossa casa mesmo em frente.
Monsaraz para nós é sobretudo o verão. Mas acabamos sempre por não resistir a um último fim de semana de paz e sossego absolutos. Estivemos quase para desistir e regressar a Lisboa logo após a chegada. A tremer de frio, pusemos a mão na parede da sala e era como se estivéssemos numa câmara frigorífica. Mas não desistimos. Acendemos a lareira e durante a primeira noite não chegámos a despir parkas e casacos. Na manhã seguinte a casa estava habitável  e até apareceu um pouco de sol.
17 de novembro
Absolutamente nada para nos distrair. Horas e mais horas de leitura ininterrupta. Depois, até ao terraço para o pôr-do-sol que nesta época não é tão glorioso como no verão, mas mesmo assim...
Às oito e meia estávamos no Lumumba para o ensopado de borrego seguido de bolo rançoso, sem esquecer azeitonas, queijo curado cortado em fatias fininhas e tinto da Adega Cooperativa de Reguengos de Monsaraz.
Passeio pela terra para fingir que assim fazemos a digestão e depois regresso a casa. Trouxe o computador mas hoje vou fazer gazeta ao e-mail e, em vez disso, fico com o belíssimo livro do Ben Almeida Faria O Murmúrio do Mundo.
19 de novembro
Uma última ida ao terraço para um pôr-do-sol de despedida. Felizmente estamos voltados para Reguengos e Évora e não temos de padecer a vista do Alqueva. Dizem que é o maior lago artificial da Europa. Gostamos muito de ser os maiores de qualquer coisa. Mas a verdade é que o Alqueva, visto lá de cima, de Monsaraz, não parece um lago. Parece um charco. Parece que choveu demais e a água ainda não teve tempo de ser absorvida pela terra.

Paulo Castilho
http://www.youtube.com/watch?v=Mt3-MXNC4lQ

domingo, 6 de janeiro de 2013

Ano Novo


Janeiro 1872.

Querido público, eis-te diante de um Ano Novo - o ano de 1872.
Aí o tens defronte de ti, mudo, impenetrável, com o seu largo chapéu de feltro escondendo a face, a capa cor de mistério traçada à Lindor, e altas botas de pregas reluzentes. A ponta da sua espada ergue de leve, por trás, uma prega subtil, a orla do manto escuro. O traidor! - vem armado!
Como será o seu rosto - claro e pacífico ou sombrio e batalhador? E os seus cabelos - grisalhos e acamados como os de um musgoso conservador, ou negros e revoltos como os de um revolucionário impaciente? E a palma da sua mão - macia e fácil como a do que espalha dinheiro, ou adunca e áspera como a de um avaro ganchoso?
"Quem o sabe? Quem o saberá?" diz o cuco da lenda.
Que ele, o Ano Novo amável, te conserve a cabeça serena, o estômago são, o bolso sonoro, e a mão decidida. Eis o bom e o positivo da vida.
E que trará ele à Pátria? É justo que pensemos um pouco na Pátria. Porque enfim, temos uma pátria. Temos pelo menos - um sítio. Um sítio verdadeiramente é que temos: isto é - uma língua de terra onde construímos as nossas casas e plantamos os nossos trigos. O nosso sítio é Portugal.  Não é propriamente uma nação, é um sítio. Já não achamos mal. A Lapónia nem um sítio é: apenas uma dispersão de cabanas na vaga extensão da neve. Nós ao menos temos um sítio!
O que vai trazer à nossa terra, debaixo da sua capa, o digno Ano de 1872?
Trar-lhe-á a paz, como um folhetim monótono continuado da véspera?
Trar-lhe-á a guerra, como uma aventura emovente a marche-marche?
Trar-lhe-á, embrulhada num cartucho, a revolução?
Trar-lhe-á, no meio de um espantado oh! universal - uma ideia?
Trar-lhe-á entre os braços, para lhe depositar no colo, uma nova dinastia - de mama?
"Quem o sabe, quem o saberá?" diz o cuco da lenda.
Nem ele mesmo o sabe talvez, o Ano Novo! Os anos chegam desprevenidos, sem plano, e começam por tomar informações com os anos que saem. E então, pelas notas colhidas, como um dramaturgo, preparam os seus episódios! Ah! Que diria o Ano Velho, ao partir com as suas malas e as suas rugas, a este Ano Novo que chegava, inexperiente e curioso? Que confidências trocaram, ao encontrar-se nessa misteriosa estrada por onde caminham os dias e os anos, pacientes transeuntes da Eternidade?