segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Outono


Nas folhas que tombam para sempre
há uma euforia que exulta de castanho.

Vêem-se no céu árvores ao contrário
com as raízes cravadas nas estrelas, e os barcos
oscilam num mar mais fundo que o costume.

Que peso é este, que no outono
enterra as coisas terra adentro,
e existe nas feridas abertas pelo ar?

Que cores conseguem perturbar a casa,
murmurando escuro nas janelas?Quem
nos expulsa da terra prometida?

Que morte se entranha na madeira
das árvores do jardim? Que vento
ilude a rua moribunda?

A luz é indecisa como um fruto
que em breve irá morrer, e ilumina
perguntas sem resposta.

A terra acorda para adormecer mais fundo,
e o dia dança com a morte
no halo ruivo do mundo.

Isabel Cristina Pires
http://www.youtube.com/watch?v=6zkmjyyzB28

Outono

domingo, 23 de outubro de 2011

O inominável


Nunca
dos nossos lábios aproximaste
o ouvido; nunca
ao nosso ouvido encostaste os lábios;
és o silêncio,
o duro espesso impenetrável
silêncio sem figura.
Escutamos, bebemos o silêncio
nas próprias mãos
e nada nos une
- nem sequer sabemos se tens nome.

Eugénio de Andrade
http://www.youtube.com/watch?v=mLq8h66oGt0

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Paisagem nas dunas


A criança, sentada na cadeira de balouço examina a paisagem. Olhos piscos, mas minuciosos, na violência da luz exterior.
A primeira zona de areia (mancha a ferver num hálito prateado, como o sal dos velhos itinerários: ruivo por dentro, alvo por fora) ocupa o terço inferior da aridez que a janela enquadra.
Segue-se uma faixa estreita de gramíneas: a evaporação da lagoa (juncos densamente roxos) submerge-as num tom mais carregado que o da própria água. Esta área, no entanto, é bastante instável: sob a declinação do sol, as cores mudam com frequência de intensidade; basta um sopro de vento, a ondulação pouco perceptível que provoca, para clarear ou escurecer as gramíneas.
Na outra margem, a linha das dunas reflecte o movimento dessa ondulação (sinusóide ténue demarcando a altura da segunda grande zona de areia) e serve de limite ao terço intermédio da paisagem.
O último terço acaba na linha superior do caixilho: formam-no as dunas distantes (recorte acentuado, revérberos de cal, como a auréola, a inquietação que as estrelas irradiam fixamente). Ao fundo, uma nesga de azul pode parecer ao mesmo tempo céu e mar; placa de zinco a incendiar-se; ou apenas um reflexo turvo da luz.
Levanta-se e examina também a ampliação fotográfica, suspensa na parede (perto da janela), que reproduz esta mesma paisagem: a moldura dá-lhe um enquadramento semelhante; falta-lhe porém a cor real, e o tempo destingiu a imagem: os contrastes são pouco visíveis, desaparecem as três zonas distintas, dissolvem-se numa única mancha castanha (quase sépia) à medida que os anos (e a réstia de sol batendo na parede pelo fim da tarde) devoram linha a linha a nitidez dos contornos. Reconhece-se ainda a paisagem, mas há sobre as coisas o resíduo dum luar lento que se esconde para lá das últimas dunas.

Carlos de Oliveira
http://www.youtube.com/watch?v=jzjofi4yH9A

sábado, 8 de outubro de 2011

Berlengas no prato


Meteu-se o viajante à estrada e deixando por agora o cabo Carvoeiro, desceu a Peniche. Chegado, foi-se informar das chegadas e partidas para as Berlengas. O viajante tem dado algumas provas de ser tolo, não estranhe que desse mais esta. Julgava ele que ir às retiradas ilhas era como apanhar o autocarro ou o comboio. Pois, não senhor. Barcos regulares, há-os a partir de Junho, e fretar hoje uma traineira que o levasse, só com forte razão e grande despesa, vistas as posses. O viajante é no cais uma estátua de desolação, parece que ninguém tão cedo será capaz de o arrancar à magoada postura, mas tendo a fisiologia as desconcertantes reacções que se lhe reconhecem, encontrou o desgosto equilíbrio numa súbita e declarada fome. O viajante, por atavismos remotos, é fatalista quando não tem outro recurso: o que não tem remédio, remediado esteja. Ir às Berlengas não pode ser, pois então almoce-se.
A vida tira com a mão direita, dá com a esquerda, ou tanto faz. O viajante teve as Berlengas no seu prato, as ilhas e todo o mar em redor, as águas profundas e azuis, as sonoras grutas, a fortaleza de São João Baptista, o passeio a remos. Cabe tudo isto numa posta de cherne?  Cabe, e ainda sobra peixe. Pela janela vê o mar, a luz brilhante que salta sobre as ondas, sente ainda uma fugidia pena de não as ir sulcando a esta hora, e num estado muito próximo da beatitude regressa ao manjar roubado às mesas de Neptuno, a esta hora irritado e perguntando às sereias e aos tritões quem foi que lhe comeu o cherne do almoço. Oxalá, de zanga, o deus dos mares não mande por aí uma tempestade.

José Saramago
http://www.youtube.com/watch?v=xvHYGv-Ul18&feature=related

domingo, 2 de outubro de 2011

A Cidade e as Serras


Na Cidade (como notou Jacinto) nunca se olham, nem lembram os astros - por causa dos candeeiros de gás ou dos globos de electricidade que os ofuscam. Por isso (como eu notei) nunca se entra nessa comunhão com o Universo que é a única glória e única consolação da Vida. Mas na serra, sem prédios disformes de seis andares, sem a fumaraça que tapa Deus, sem os cuidados que, como pedaços de chumbo, puxam a alma para o pó rasteiro - um Jacinto, um Zé Fernandes, livres, bem jantados, fumando nos poiais de uma janela, olham para os astros e os astros olham para eles. Uns, certamente, com olhos de sublime imobilidade ou de sublime indiferença. Mas outros curiosamente, ansiosamente, com uma luz que acena, uma luz que chama, como se tentassem, de tão longe, revelar os seus segredos, ou de tão longe compreender os nossos...
- Oh Jacinto, que estrela é esta, aqui, tão viva, sobre o beiral do telhado?
Não sabíamos. Eu, por causa da espessa crosta de ignorância com que saí do ventre de Coimbra, minha Mãe Espiritual. Ele, porque na sua Biblioteca possuía trezentos e oito tratados sobre Astronomia, e o Saber, assim acumulado, forma um monte que nunca se transpõe nem desbasta. Mas que nos importava que aquele astro além se chamasse Sírio e aquele outro Aldebarã? Que lhes importava a eles que um de nós fosse Jacinto, outro Zé? Eles tão imensos, nós tão pequeninos, somos a obra da mesma Vontade. E todos, Uranos ou Lorenas de Noronha e Sande, constituímos modos diversos de um Ser único e as nossas diversidades esparsas somam na mesma compacta Unidade. Moléculas do mesmo Todo,  governadas pela mesma Lei, rolando para o mesmo Fim... Do astro ao homem, do homem à flor do trevo, da flor do trevo ao mar sonoro - tudo é o mesmo Corpo, onde circula, como um sangue, o mesmo Deus. E nenhum frémito de vida, por menor, passa numa fibra desse sublime Corpo, que não se repercuta em todas,  até às mais humildes, até às que parecem inertes e invitais. Quando um Sol, que não avisto, nunca avistarei, morre de inanição nas profundidades, esse esguio galho de limoeiro, em baixo na horta, sente um secreto arrepio de morte - e, quando eu bato uma patada no soalho de Tormes, além o monstruoso Saturno estremece, e esse estremecimento percorre o inteiro Universo!