sábado, 8 de outubro de 2011

Berlengas no prato


Meteu-se o viajante à estrada e deixando por agora o cabo Carvoeiro, desceu a Peniche. Chegado, foi-se informar das chegadas e partidas para as Berlengas. O viajante tem dado algumas provas de ser tolo, não estranhe que desse mais esta. Julgava ele que ir às retiradas ilhas era como apanhar o autocarro ou o comboio. Pois, não senhor. Barcos regulares, há-os a partir de Junho, e fretar hoje uma traineira que o levasse, só com forte razão e grande despesa, vistas as posses. O viajante é no cais uma estátua de desolação, parece que ninguém tão cedo será capaz de o arrancar à magoada postura, mas tendo a fisiologia as desconcertantes reacções que se lhe reconhecem, encontrou o desgosto equilíbrio numa súbita e declarada fome. O viajante, por atavismos remotos, é fatalista quando não tem outro recurso: o que não tem remédio, remediado esteja. Ir às Berlengas não pode ser, pois então almoce-se.
A vida tira com a mão direita, dá com a esquerda, ou tanto faz. O viajante teve as Berlengas no seu prato, as ilhas e todo o mar em redor, as águas profundas e azuis, as sonoras grutas, a fortaleza de São João Baptista, o passeio a remos. Cabe tudo isto numa posta de cherne?  Cabe, e ainda sobra peixe. Pela janela vê o mar, a luz brilhante que salta sobre as ondas, sente ainda uma fugidia pena de não as ir sulcando a esta hora, e num estado muito próximo da beatitude regressa ao manjar roubado às mesas de Neptuno, a esta hora irritado e perguntando às sereias e aos tritões quem foi que lhe comeu o cherne do almoço. Oxalá, de zanga, o deus dos mares não mande por aí uma tempestade.

José Saramago
http://www.youtube.com/watch?v=xvHYGv-Ul18&feature=related

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