domingo, 30 de junho de 2013

Os justos



Começam o dia louvando o imperfeito:
o tempo que se inclina para o lado partido
as escassas laranjas que se tornam
amarelas no meio da palha
as talhas sem vinho

Olham por dentro a brancura da manhã
e em tudo quanto auxilia um homem no seu ofício
louvam o vulnerável e o inacabado

Estão sentados à soleira dos espaços
trabalhados devagar pelo silêncio

Quando Deus voltar
não terá de arrombar todas as portas

domingo, 23 de junho de 2013

A casa da minha infância


A casa da minha infância é muito longe de Lisboa, entre pinhais, castanheiros, a vinha, montes ao longe. E amoras, veredas de amoras. Em toda a vida nunca fui tão feliz como ali. Podia correr-se nas ruas
(ruas?)
andar de carroça, brincar nas esquinas, sentarmo-nos numa pedra, durante muito tempo, a ver os lagartos, as abelhas, a bicharada toda. Apanhar calhaus de mica, cheios de brilho. E escutar os ramos da trepadeira à noite, contra os vidros do janelico. Onde estão as pessoas desse tempo, onde está o eu desse tempo? A mercearia não era mercearia, era loja de quase tudo, semana sim semana não havia feira, ciganos, ourives, leitões, barros, barros, barros. Bicicletas tão velhas! Manchas de sol no chão! Chamavam-me
- Tóino
não me chamavam
-  António
e que é do Tóino, meu Deus? Está a partir pinhões, batendo-os com um pedaço de granito contra um pedaço de granito. Está a comer castanhas verdes e a ficar mal da barriga. Está a ouvir o sino da igreja, aos domingos, e o som das moedas do ofertório a caírem na caixa de lata. Estão a dar-lhe banho na selha. Está a ver os comboios lá em baixo, pelo meio das árvores fora. Está a espreitar as pessoas na taberna, sempre escura, cheia de moscas. Quase tantas como no curral da burra.
Infância, ainda sinto o teu mistério, as descobertas diárias, o teu murmúrio no meu sangue. Ainda me acompanhas com, nos intervalos da alegria, tristezas inexplicáveis que passavam depressa, perplexidades inexplicáveis que passavam depressa, angústias inexplicáveis que passavam depressa. Saudades disso, também e, de repente, o maravilhamento de novo. Paixões por meninas entrevistas, um par de tranças sem cara, um sorriso que se me não dirigia, e ainda bem porque, no caso de se me dirigir, não saberia o que fazer com ele. Isto vai tudo mal redigido mas pouco me importa. Importa-me a casa da minha infância muito longe de Lisboa, para mim, em criança, no outro lado do mundo, entre pinhais, castanheiros, a vinha, montes ao longe. E as amoras, claro, as amoras. A conversa das pessoas crescidas, à noite, no andar de cima, conversas, risos, passos no corredor e a trepadeira no postigo sempre, a trepadeira no postigo.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Alentejo


Há quem se canse de percorrer as estradas intermináveis e lisas desse latifúndio sem relevos. Há quem adormeça de tédio a olhar a uniformidade da sua paisagem, que no inverno se veste dum pelico castanho e no verão duma croça madura. Que é parda mesmo quando o trigo desponta e loura mesmo quando o ceifaram. Queixam-se da melancolia dos estevais negros e peganhosos, que meditam a sua corola branca um ano inteiro, da semelhança aflitiva das azinheiras, que parecem medidas pelo mesmo estalão, e não distinguem nos rebanhos que encontram, quer de ovelhas, quer de porcos, as particularidades que individualizam todo o ser vivo. Afeitos à variedade do Norte, que até aos bichos domésticos consente cara própria e personalidade, aflige-os a constante do Sul, que obriga todo o circunstancial a ocupar o seu lugar de zero diante do infinito. Perdidos e sós no grande descampado, sentem-se desamparados e vulneráveis como crianças. Amedronta-os a solidão de uma natureza que não se esconde por detrás de nenhum acidente, corajosa da sua nudez limpa e total.
Eu, porém, não navego nas águas desses desiludidos. A percorrer o Alentejo, nem me fatigo, nem cabeceio de sono, nem me torno hipocondríaco. Cruzo a região de lés a lés, num deslumbramento de revelação. Tenho sempre onde consolar os sentidos, mesmo sem recorrer aos lugares selectos dos guias. Embriago-me   na pura charneca rasa, encontrando encantos particulares nessa pseudo-monotonia rica de segredos. Nada me emociona tanto como um oceano de terra estreme, austero e viril. A palmilhar aqueles montados desmedidos, sinto-me mais perto de Portugal do que no castelo de Guimarães. Tenho a sensação de conquistar a pátria de novo e de a merecer. O chão das outras províncias já se não vê, ou porque vive coberto pela verdura doméstica de oito séculos, ou porque a erosão levou toda a carne do corpo e deixou apenas os ossos. Mas a terra alentejana pode contemplar-se ainda no estado original, virgem, exposta e aberta. E é nela que encho a alma e afundo os pés, num encontro da raiz com o húmus da origem. Abraço numa ternura primária as léguas e léguas duma argila que permanece disponível mesmo quando tudo parece semeado. O corpo, ali, pode ainda tocar o barro de que Deus o criou.

Miguel Torga
http://www.youtube.com/watch?v=MQRJKSCnH0o

domingo, 9 de junho de 2013

As visitas


Caem co'a calma as aves intermináveis do passado,
os tentilhões, as poupas, os noitibós,
crianças cegas e desamparadas
também elas, agora que se perderam de nós.

Anjos sonâmbulos pousados no telhado
das noites de insónia (espécie de curvatura
da insónia para dentro de si
sobre paisagens desabitadas).

Onde se refugiará de dia
a sua alada materialidade,
em que desvãos da realidade ou da literatura,
entre restos de coisas que li:

Sá de Miranda (caem co'a calma as aves),
Junqueiro (as andorinhas da infância),
e dias errantes, casa vazias,
camiões de mudanças,

remorsos, lentas estações:
e aves, agora como eu
desprovidas de centro e de tempo
agora, como eu, apenas emoções?

Manuel António Pina
Sabugal, 6/8/11
http://www.youtube.com/watch?v=Xl71VPq6LiE

domingo, 2 de junho de 2013

As águas livres


Fragmentos, ecos, pedaços de memórias. Coisas soltas, sem nexo:
Ainda se peneirava a farinha para fazer o pão, havia nos armários uma série de peneiras redondas, encaixadas umas nas outras e com redes de malhas diferentes.
E havia o ferro velho, que comprava garrafas e frascos de vidro, tubos vazios de pasta de dentes, jornais, papéis, pregos, latas, fechaduras estragadas ou partidas.
E o farrapeiro, que chegava à procura de roupa velha e pedaços de tecido, peles de coelho e tranças de mulheres. Vinha de carroça e por cada saco de vinte e cinco quilos que enchia de farrapos recebia do patrão travessas e pratos de faiança, que depois vendia no mercado. Dos cabelos entrançados das mulheres    faziam-se perucas, uma arte difícil sobre a qual ele pouco dizia, a não ser que às vezes era preciso tingirem-se os cabelos, numa cor ao gosto de quem encomendava. Prometeu que um dia nos mostrava uma peruca pronta, que ia trazer na carroça, dentro de uma caixa de chapéus, mas nunca chegou a trazê-la.
E havia a peixeira, o leiteiro, o padeiro, o latoeiro, o mola-tesouras. E "o velho da areia", que aparecia uma vez por mês e vendia um tostão e meio de areia branca muito fina com que se areavam os tachos, frigideiras, talheres, objectos de ferro ou de alumínio, esfregando-os com força com um pano molhado passado pela areia. Era um velho magro, de bigode amarelado de nicotina e um cheiro insuportável a mau tabaco, a suor e a pó, no capote alentejano que trazia aos ombros no inverno. Gostava de crianças e ria muito connosco quando vínhamos ao portão do quintal. Reparávamos então que os seus óculos estavam baços e o capote se começava a desfazer nos ombros.

Teolinda Gersão
http://www.youtube.com/watch?v=zOhbSWR2XN4