domingo, 23 de junho de 2013

A casa da minha infância


A casa da minha infância é muito longe de Lisboa, entre pinhais, castanheiros, a vinha, montes ao longe. E amoras, veredas de amoras. Em toda a vida nunca fui tão feliz como ali. Podia correr-se nas ruas
(ruas?)
andar de carroça, brincar nas esquinas, sentarmo-nos numa pedra, durante muito tempo, a ver os lagartos, as abelhas, a bicharada toda. Apanhar calhaus de mica, cheios de brilho. E escutar os ramos da trepadeira à noite, contra os vidros do janelico. Onde estão as pessoas desse tempo, onde está o eu desse tempo? A mercearia não era mercearia, era loja de quase tudo, semana sim semana não havia feira, ciganos, ourives, leitões, barros, barros, barros. Bicicletas tão velhas! Manchas de sol no chão! Chamavam-me
- Tóino
não me chamavam
-  António
e que é do Tóino, meu Deus? Está a partir pinhões, batendo-os com um pedaço de granito contra um pedaço de granito. Está a comer castanhas verdes e a ficar mal da barriga. Está a ouvir o sino da igreja, aos domingos, e o som das moedas do ofertório a caírem na caixa de lata. Estão a dar-lhe banho na selha. Está a ver os comboios lá em baixo, pelo meio das árvores fora. Está a espreitar as pessoas na taberna, sempre escura, cheia de moscas. Quase tantas como no curral da burra.
Infância, ainda sinto o teu mistério, as descobertas diárias, o teu murmúrio no meu sangue. Ainda me acompanhas com, nos intervalos da alegria, tristezas inexplicáveis que passavam depressa, perplexidades inexplicáveis que passavam depressa, angústias inexplicáveis que passavam depressa. Saudades disso, também e, de repente, o maravilhamento de novo. Paixões por meninas entrevistas, um par de tranças sem cara, um sorriso que se me não dirigia, e ainda bem porque, no caso de se me dirigir, não saberia o que fazer com ele. Isto vai tudo mal redigido mas pouco me importa. Importa-me a casa da minha infância muito longe de Lisboa, para mim, em criança, no outro lado do mundo, entre pinhais, castanheiros, a vinha, montes ao longe. E as amoras, claro, as amoras. A conversa das pessoas crescidas, à noite, no andar de cima, conversas, risos, passos no corredor e a trepadeira no postigo sempre, a trepadeira no postigo.

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