segunda-feira, 17 de junho de 2013

Alentejo


Há quem se canse de percorrer as estradas intermináveis e lisas desse latifúndio sem relevos. Há quem adormeça de tédio a olhar a uniformidade da sua paisagem, que no inverno se veste dum pelico castanho e no verão duma croça madura. Que é parda mesmo quando o trigo desponta e loura mesmo quando o ceifaram. Queixam-se da melancolia dos estevais negros e peganhosos, que meditam a sua corola branca um ano inteiro, da semelhança aflitiva das azinheiras, que parecem medidas pelo mesmo estalão, e não distinguem nos rebanhos que encontram, quer de ovelhas, quer de porcos, as particularidades que individualizam todo o ser vivo. Afeitos à variedade do Norte, que até aos bichos domésticos consente cara própria e personalidade, aflige-os a constante do Sul, que obriga todo o circunstancial a ocupar o seu lugar de zero diante do infinito. Perdidos e sós no grande descampado, sentem-se desamparados e vulneráveis como crianças. Amedronta-os a solidão de uma natureza que não se esconde por detrás de nenhum acidente, corajosa da sua nudez limpa e total.
Eu, porém, não navego nas águas desses desiludidos. A percorrer o Alentejo, nem me fatigo, nem cabeceio de sono, nem me torno hipocondríaco. Cruzo a região de lés a lés, num deslumbramento de revelação. Tenho sempre onde consolar os sentidos, mesmo sem recorrer aos lugares selectos dos guias. Embriago-me   na pura charneca rasa, encontrando encantos particulares nessa pseudo-monotonia rica de segredos. Nada me emociona tanto como um oceano de terra estreme, austero e viril. A palmilhar aqueles montados desmedidos, sinto-me mais perto de Portugal do que no castelo de Guimarães. Tenho a sensação de conquistar a pátria de novo e de a merecer. O chão das outras províncias já se não vê, ou porque vive coberto pela verdura doméstica de oito séculos, ou porque a erosão levou toda a carne do corpo e deixou apenas os ossos. Mas a terra alentejana pode contemplar-se ainda no estado original, virgem, exposta e aberta. E é nela que encho a alma e afundo os pés, num encontro da raiz com o húmus da origem. Abraço numa ternura primária as léguas e léguas duma argila que permanece disponível mesmo quando tudo parece semeado. O corpo, ali, pode ainda tocar o barro de que Deus o criou.

Miguel Torga
http://www.youtube.com/watch?v=MQRJKSCnH0o

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