segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Sísifo

                     
                         Recomeça...
                         Se puderes,
                         Sem angústia e sem pressa.
                         E os passos que deres,
                         Nesse caminho duro
                         Do futuro,
                         Dá-os em liberdade.
                         Enquanto não alcances
                         Não descanses.
                         De nenhum fruto queiras só metade.

                         E, nunca saciado,
                         Vai colhendo
                         Ilusões sucessivas no pomar.
                         Sempre a sonhar
                         E vendo,
                         Acordado,
                         O logro da aventura.
                         És homem,não te esqueças!
                         Só é tua a loucura
                         Onde, com lucidez, te reconheças.

                         Miguel Torga
                         (arte de Zhang-Kechun)

domingo, 23 de dezembro de 2018

Natividade

                     

                              Brilhai lua de oiro
                       nasceu o menino.
                       Brilhai até que traga a madrugada 
                       sua luz de copo azul,
                       manhã de frio cristal.

                       Os anjos suspendem o canto
                       voam pelo rombo da telha alta da
                       fábrica.
                       Já entram os primeiros pastores.
                       No fogareiro de barro

                       São José aquece a faixa
                       que vai sentir o indefeso menino.
                       A cesta dos ovos é o presente
                       perfeito
                       desenhado pelas aves.

                       Brilhai luz do meio-dia
                       como se descessem de deus
                       raios azuis de incenso.

                       João Miguel Fernandes Jorge
                       ( retábulo do Paraíso, atrib. a Gregório Lopes)
                       https://www.youtube.com/watch?v=8j6MAFUoOTg        

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Tartaruguinhas


Ira sempre esperou o dia em que as tartarugas-rosa vinham do mar. Quando o calor subia, tudo ficava de olho, à coca, predadores alados, marinhos, humanos, na expectativa dos ovos. Então o dia chegava e elas emergiam das águas aos milhares, gigantes de meia tonelada, dois metros de comprimento, trepavam pela areia com as suas patas nadadeiras, as suas cabeças de milhões de anos, cada uma escolhia um lugar para escavar o buraco, enterrava dezenas e dezenas de ovos, cobria-os e voltava ao mar.
A primeira vez que viu isto, Ira perguntou à avó se eram todas mães, ou os pais também tinham ovos. A avó disse que não, que os pais tartaruga nadam pelos oceanos toda a vida, que é lá que põem a sua semente nas mães, e nunca voltam a pisar a praia onde nasceram. Mas daí a lua-e-meia, explicou, ele poderia ver os bebés tartaruga, machos e fêmeas. Ira fez as contas e começou a ir à praia. Até que certa noite aconteceu, milhares de bebés cor-de-rosa começaram a brotar dos buracos, sacudindo a areia, e imediatamente, freneticamente correram na direcção da água. O luar iluminava aquela maratona épica, aqueles metros em que tudo rivalizava para lhes roubar a vida. Ira só pensava que tinham nascido há segundos, sozinhos no mundo, sem pai nem mãe, e sabiam para onde ir, o que fazer. Que segredo era esse com que já nasciam?
Anos depois, na cidade aprendeu que só sobrevive um em cada cem bebés-tartaruga. Quando chegam a adultos, fecundam com outros uma mesma fêmea, que no grande calor voltará a Alendabar para enterrar os seus ovos, recomeçando tudo. E se a temperatura da areia for acima de trinta graus, o ovo será fêmea.

Alexandra Lucas Coelho
https://www.youtube.com/watch?v=1oiximotlME

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Homero

                            

                  Escrever o poema como um boi lavra o campo
                  Sem que tropece no metro o pensamento
                  Sem que nada seja reduzido ou exilado
                  Sem que nada separe o homem do vivido

                  Sophia de Mello Breyner Andresen
                  (pintura de Miró)
                  https://www.youtube.com/watch?v=55yJJiwrmAw

domingo, 25 de novembro de 2018

Testamento de Vieira da Silva


Eu lego aos meus amigos

Um azul cerúleo para voar alto.
Um azul cobalto para a felicidade.
Um azul ultramarino para estimular o espírito.
Um vermelhão para o sangue circular alegremente.
Um verde musgo para apaziguar os nervos.
Um amarelo ouro: riqueza.
Um violeta cobalto para o sonho.
Um garança para deixar ouvir o violoncelo.
Um amarelo barife: ficção científica e brilho; resplendor.
Um ocre amarelo para aceitar a terra.
Um verde veronese para a memória da primavera.
Um anil para poder afinar o espírito com a tempestade.
Um laranja para exercitar a visão de um limoeiro ao longe.
Um amarelo limão para o encanto.
Um branco puro: pureza.
Terra de Siena natural: a transmutação do ouro.
Um preto sumptuoso para ver Ticiano.
Um terra de sombra natural para aceitar melhor a melancolia negra.
Um terra de Siena queimada para o sentimento de duração.

   
                           Maria Helena Vieira da Silva 
                        (Arpad Szenes - retrato)
                        https://www.youtube.com/watch?v=pzmpiL1R9YM

sábado, 17 de novembro de 2018

Prenda para os teus 7 anos


A belharara é uma espécie muito rara
B aleipato passeia feliz com o seu fato
C abralesma faz o pino e está na mesma 
D ragãochita agarra o balão com a guita
E matigre canta e escreve sempre alegre
F ocalince brinca e ri com tanta tolice 
G irafante dança o tango sempre elegante
H ienarã liga à irmã logo de manhã
I guanimpala traz um boné com pala
J oanigata nunca se cala e pouco se rala
K oalarrato lança ao ar o seu sapato
L eopardal cozinha tudo com muito sal
M acacobra come imenso e nada sobra
N ialacamelo gosta de limonada com gelo
O kapintarroxo entra aos saltos e é coxo
P ulgafalhoto anda com o colete num oito
Q uiparapandu não é nada inventei tudo
R inoceboi picou-se na patinha e dói
S apopanda traz o chapéu meio à banda
T artaruburra cai na neve e não se esmurra
U rsorrola voa dentro de uma passarola
V eadocorvo passa sem causar estorvo
W hale diz-se assim baleia em inglês
X ipaletónico podia ser um animal supersónico.
Y atulmerido também não existe e é querido
Z ebraranhão adora andar no seu avião.

HN, 14 Nov. 2018 
(arte de Celeste Capitão)


domingo, 11 de novembro de 2018

Imaginação


Entrei no café com um rio na algibeira
e pu-lo no chão,
a vê-lo correr
da imaginação...

A seguir, tirei do bolso do colete
nuvens e estrelas
e estendi um tapete
de flores
a concebê-las.

Depois, encostado à mesa,
tirei da boca um pássaro a cantar
e enfeitei com ele a Natureza
das árvores em torno
a cheirarem ao luar
que eu imagino.

E agora aqui estou a ouvir
A melodia sem contorno
Deste acaso de existir
-onde só procuro a Beleza
para me iludir
dum destino.


José Gomes Ferreira
(arte de Beatriz Bagulho)
https://www.youtube.com/watch?v=Hch9bWQ3hhk

domingo, 4 de novembro de 2018

Railroad Sunset


A casa do agulheiro abandonada
e o alpendre da sinalização.
Por detrás de cretones e flores
secavam as malgas de marmelada.
O mar dos comboios já não pára aqui
O cartaxo de cabeça preta
canta nos fios telegráficos
entre taludes e cascalho.
A desolação do crescimento faz comércio
noutros lugares.
Nos baldios crepúsculos vermelhos
por charnecas que voltam a ser verdes
regressam as inseguras coisas naturais.

Joaquim Manuel Magalhães
(pintura de Edward Hopper)
https://www.youtube.com/watch?v=K-CvKEwjxBU

domingo, 28 de outubro de 2018

O Poema Pouco Original do Medo


O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis

Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
a tua voz talvez
talvez a minha
com certeza a deles

Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

Sim
a ratos



Alexandre O'Neill
(pintura de Graça Morais)
https://www.youtube.com/watch?v=Kt2AB7QeaY0

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Uma questão de tempo


Do outro lado da casa, as crianças brincam com o tempo
que corre para que elas não brinquem com ele. Na casa
ao lado, um cão vê o tempo passar e ladra-lhe
para ele fugir como se fosse um ladrão. Na rua, o mendigo
pede a toda a gente a esmola de um tempo, e toda
a gente diz que não tem tempo para lhe dar. No café, peço
uma chávena de tempo, curto e bem forte
porque não tenho tempo para dormir, mas
a meu lado há quem peça uma chávena bem cheia
de tempo para que o tempo demore a beber. Há
quem corra por falta de tempo, e o tempo vai
atrás dele para o apanhar. No metro, a rapariga
atravessa o cais, devagar, como se tivesse mais tempo
do que todos os que contam o tempo para
não lhes descontarem no tempo. E quando me perguntam
se tenho tempo, olho para o relógio, como se ele
estivesse cheio de tempo, e peço que tirem de dentro
dele todo o tempo, e que o esvaziem até ao último
segundo, para eu ficar com tempo para
ver quanto tempo passou.

Nuno Júdice
(pintura de Álvaro Lapa)
https://www.youtube.com/watch?v=HQap2igIhxA


quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Rua de Camões


A minha infância 
cheira a soalho esfregado a piaçaba
aos chocolates do meu pai aos Domingos
à camisa de noite de flanela
da minha mãe

Ao fogão a carvão
à máquina a petróleo
ao zinco da bacia de banho

Soa a janelas de guilhotina
a desvendar meia rua
surgia sempre o telhado
sustentáculo da mansarda
obstáculo da perspectiva

E havia a Dona Laura
senhora distinta
e sua criada Rosa
que ao nosso menor salto
lesta vinha avisar
que estavam lá em baixo
as pratas a abanar no guarda-louça

O caruncho repicava nas frinchas
alongava as pernas
a casa envelhecia

A minha mãe fazia-me as tranças
antes de ir para a escola
e dizia-me muitas vezes

Não olhes para os rapazes
que é feio.

Inês Lourenço

domingo, 30 de setembro de 2018

Um buraco de luz para Deus


Ligo o braço longe a uma estrela
A lua límpida sobe no céu
Um anel passa através de outro anel

Procuro o tempo e encontro a passagem
Procuro a morada e encontro o relento

Às vezes mesmo sem voz
Às vezes até sem palavras
Silêncio que Deus me deu
És uma forma de luz
Tornas sagrado o que existe, centelhas da verdade
Somos o barro, somos poeira
O teu vento errante nos leva

Eu sei existe em mim, mesmo no fundo de um poço
Um buraco de luz para Deus
Um nome escrito no céu

E não sei o que fazer e rezo
Rezo sem saber dizer o quê e a quem
Mas rezo
Rezo o chão e a flor, o pão e a fome,
Rezo o branco e a dor
Nas letras do teu nome
Há um buraco de luz

José Tolentino Mendonça
https://www.youtube.com/watch?v=lPg8q3LdLx8
(arte de Helena Almeida)

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Quinto Poema do Pescador


Eu não sei de oração senão perguntas
ou silêncios ou gestos ou ficar
de noite frente ao mar não de mãos juntas
mas a pescar.

Não pesco só nas águas mas nos céus
e a minha pesca é quase uma oração
porque dou graças sem saber se Deus
é sim ou não.

Manuel Alegre
(arte de Zhang Kechun)
https://www.youtube.com/watch?v=sCQpycvSF24

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

A Selva


A subida lenta, quinze dias bem puxados, de Belém ao Paraíso, impacientava Alberto, moroso em adaptar-se ao meio. 
O "Justo Chermont" ora enfiava pelos estreitos "paranás", tão ocultos nas margens que o barco dir-se-ia penetrar na própria floresta, ora despachava para o céu os rolos do seu  fumo em pleno centro do rio. E então, se os olhos se dirigiam para a frente, a saída tornava-se tão misteriosa como o fora a entrada - tudo selva, selva por toda a parte, fechando o horizonte na primeira curva do monstro líquido (...)
Muitas vezes, numa só hora, tornava-se necessário andar da margem direita para a esquerda, no centro do rio ou juntinho à terra, porque o canal tinha caprichos de serpente e era versátil como uma mulher. Onde, há um ano, a sonda marcava profundidade para a maior quilha do Mundo, já hoje se erguia uma praia, esplêndida para a desova das tartarugas no Estio. A terra inconsistente, que se greta nos barrancos, parte e cai aos milhares de toneladas, abalando a solidão com o pavoroso rumor do seu mergulho, cria todos os dias novos obstáculos à marcha dos navios. Mas nem isso, nem os grossos troncos desprendidos das margens nativas, que flutuam na corrente e amolgam ou furam as proas descuidosas, perturbavam os pilotos do Amazonas, subtis na previsão das dificuldades e com memória de prodígio (...)
Nem sempre se divisava a outra margem e, se surgia, era um simples pespontado negro, na linha do horizonte. Nas árvores mortas que arrastava, preguiçosamente, pousavam belas pernaltas, algumas adormecidas sobre uma só perna e o bico longo semioculto no colo; outras, de longas asas abertas, ensaiando um voo que nunca tinha início - um voo que era como uma saudação litúrgica ao Sol radioso dos trópicos.

Ferreira de Castro
(pintura de Manuel Lapa)
https://www.cm-oaz.pt/cultura.353/casa_museu_ferreira_de_castro.1499/casa_-_museu_ferreira_de_castro.a4142.html

sábado, 8 de setembro de 2018

Lembrança da ria de Faro


Dunas atrás da casa
gafanhotos cor de
madeira cardos cor de areia
ao fim da tarde,
barcos na água rósea
onde a cidade, em frente à casa, cai
De madeira caiada a
casa está
sobre a areia, que escurece quando
a maré devagar desce na praia


sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Olhão






Vila cubista chamaram a Olhão, e , de facto, a vol d'oiseau, parece a casaria projectar-se duma tela de Picasso para ludíbrio dos olhos afeitos à ordem objectiva das três dimensões. De um prédio para o outro as açoteias e fachadas imbricam-se, acavalam-se, sobrepõem-se, desarticulam-se, anuladas pela brancura e pela miragem as leis da perspectiva e do volume. São milhares de cubos em equilíbrio instável, paradoxal, absurdo, como cantarias duma Babel juncando um campo raso. E todavia, deste mar revolto de planos e desta fanfarra endiabrada de branco, filtra-se uma sensação de pureza, de banho auroral, como rescende o perfume dum canteiro de açucenas. E dá vontade de ali ficar, à vista da ria, dum azul ideal de iluminura, entre o céu duma diafaneidade vaporosa, onde mal se aguentam nuvens brancas, e aquele tablado branco, escapo à imaginação mais desmedida.
É com o sol - e o sol é o xerife sempre presente desta terra que, sem a Nossa Senhora do Rosário, padroeira, íamos dizer sarracena - que é preciso ver Olhão do alto da sua torre. Do moinho do Levante ao «Mundo Novo», onde a telharia fresca de Marselha põe uma barra sanguínea, rola e flameja a alterosa procela de branco. Um zimbório vermelho, que emerge e sobe no ar como balão de arraial, a cúpula da Soledade, incerta se cobre igreja se mesquita, o vão negro das frestas e até o rasgão oblongo das ruas liquefazem-se no dilúvio de alvaiade.
O próprio areal da ria aparece marchetado de branco, das mil placas deixadas pela água da baixa-mar. E por cima da selva de mastros, que povoam a pequena angra azul, à espalda das esfumadas ilhas da Armona e da Culatra, longa esta e à flor das águas como um enorme cetáceo adormecido, lá onde céu e mar se confundem, tudo é uma toalha láctea, irisada dum leve, levíssimo matiz de oiro.



sábado, 25 de agosto de 2018

A Terra e a Arte de Aquilino





O caso de Aquilino é diferente. Este é, por contraste bravio, beirão das alturas. E para lhe compreender certa rudeza de alma, negrume de juízos, realismo feroz, gosto e jeito desabrido de vincar opiniões contrárias, parece-nos útil considerar seu ninho de águia, o áspero planalto onde lhe cresceram as rémiges e encurvaram as garras. Tivemos a fortuna de fazer da sua casa de Soutosa o centro irradiante de pesquisa ao que havia de mais característico entre o Paiva e o Távora, entre Lamego e Vila Nova de Paiva, sobre o chão das serras da Lapa e Nave.
A moradia de Aquilino, a 850 metros de altitude, é uma espécie de Terra da Promissão, ao cabo dos desertos. A terra do planalto, à volta, é seca, áspera, e tão carregada de penhas grandiosas e redondas - rochas "arrebanhadas" - como se nos encontrássemos a meio duma floresta de tortulhos megalíticos que, ao descer duma dessas massas glaciárias dos primevos do planeta, houvessem petrificado.
A planura paira e pende sobre as vertentes dos rios, que irradiam em torno. Para ali chegar, vindo dos quatro rumos, atravessam-se os cursos altos do Vouga, do Paiva, do Távora e de mais de que um tributário do Mondego. Na terra, recoberta de piorno e urzes, correm as lebres e as perdizes; cava-se o fojo do lobo e da raposa. E, de noite, se pomos os olhos no céu límpido e profundo, empolga-nos um misto de assombro e de terror sagrado. Sobre nós palpitam vias lácteas; pululam mundos faiscantes. É como se o Deus do Velho Testamento surgisse lá do fundo envolto na sarça ardente do Universo em plena criação.
Jamais vi construções mais sólidas, rudes e escuras do tempo e do granito, que, por exemplo as de Peva, ou aquelas de Ariz, encostadas às penedias, fazendo corpo com elas, como se um canteiro ciclópico as houvesse talhado na mesma fraga.
Mas recolhidos à vivenda de Aquilino, cercada pela quinta, onde as fruteiras pendem carregadas de pomos, e os pinheiros e os castanheiros dão sombra tutelar e o pão dos serranos, as "Terras do Demo", apregoadas pelo escritor, parecem-nos mera hipérbole e enfeite literário.
A primeira visita que fizemos foi à Senhora da Lapa, centro de romarias, célebre outrora, hoje em declínio(...)
Mas o templo é o mais singular que possa imaginar-se e também o mais acomodado ao selvático mundo de penhas em que assenta. Construído sobre duas pequenas fragas, integra-se e prolonga-se no seu âmago. Em vez de naves, os interstícios das fragas oferecem circulação aos visitantes. A capela do Sacramento, a gruta-altar da Virgem e um pitoresco presépio da escola de Machado de Castro - tudo se entranha nessa parte troglodítica do templo.

Jaime Cortesão
https://arquivos.rtp.pt/conteudos/quando-os-lobos-uivam-episodio-01/

sábado, 11 de agosto de 2018

A propósito de um eclipse (27/07/2018)



Que estranho, de repente
a lua ficou vermelha,
envolta em poeira cósmica,
nuvem de algodão colorido
vogando ao sabor da brisa.
Será do eclipse?

Um tum tum muito certinho
é o coração da lua a bater.
Inspiro o ar bem devagar…
Hum, sabe a terra molhada!
À volta um silêncio intrigante.
Será do eclipse?

Claro. Só pode...
Um eclipse é algo muito belo e transcendente...

Tão convencional!!!
Segrega ao meu ouvido uma voz bem conhecida.

Ok, podem fazer delete...


HN
11 Agosto 2018
(pintura de Van Gogh)
https://www.youtube.com/watch?v=n9xOl8qZ7tc

domingo, 29 de julho de 2018

Eclipse


Pois ali está, no meio da noite, a Lua. É mesmo um lago de prata, com vagas sombras cinzentas — sombras de árvores, de barcos, de aves aquáticas... O céu está muito límpido, e é puro o brilho das estrelas. Mas em breve se produzirá o eclipse. 
E, então, pouco a pouco, o luminoso contorno vai sendo perturbado pela escuridão.  A Terra, esta nossa misteriosa morada, vai projetando sua forma naquele redondo espelho. Muito lentamente sobe a mancha negra sobre aquela cintilante claridade. É mesmo um dragão de trevas que vai calmamente bebendo aquela água tão clara; devorando, pétala por pétala, aquela flor tranquila.
E o globo da Lua, num dado momento, parece roxo, sanguíneo, como um vaso de sangue. Que singular metamorfose, e que triste símbolo! Ali vemos a Terra, melancolicamente reproduzida na apagada limpidez da Lua. Ali estamos, com estas lutas, estes males, ambições, cólera, sangue. Ali estamos projetados! E poderíamos pensar, um momento, na sombra amarga que somos. Sombra imensa. Mancha sanguínea. (Por que insistimos em ser assim?)
Ah! — mas o eclipse passa. Recupera-se a Lua, mais brilhante do que nunca. Parece até purificada.(Brilharemos um dia também com o maior brilho? Perderemos para sempre este peso de treva?) 

Cecília Meirelles
(pintura de António Bandeira)                                                                                   
https://www.youtube.com/watch?v=tLCCzTPJ0-g

quarta-feira, 25 de julho de 2018

Este livro que vos deixo...

         
             Após um dia tristonho,
             de mágoas e agonias
             vem outro alegre e risonho:
             são assim todos os dias.

             Nas quadras que a gente vê,
             quase sempre o mais bonito
             está guardado pr'a quem lê
             o que lá não 'stá escrito.

             Ó! quem me dera, sozinho,
             e em quatro versos somente,
             contar ao mundo inteirinho
             a mágoa de toda a gente.

             Para não fazeres ofensas
             e teres dias felizes,   
             não digas tudo o que pensas,
             mas pensa tudo o que dizes.

             Da música a melodia
             diz, pela alma falando,
             mais do que a boca diria
             muitas horas conversando.

             António Aleixo
             (escultura de Lagoa Henriques)
             https://www.youtube.com/watch?v=ilWmtAUQ_Es

sábado, 14 de julho de 2018

A arquitetura imaginária de M. C. Escher


As arcadas, as portas, uma abóbada
inversas. Quem caminha ali procura
um maior equilíbrio, aquela fuga
para dentro de si, onde comece
este segredo que fosse a certeza
de se perder até se tornar seu
um novo espaço. Qual? Ele não sabe
porque ali noutras formas principia
o que se configura para sempre
nas linhas tão secretas de um desenho
que foi pensado apenas para ser
uma outra imagem, a que está ausente.

Fernando Guimarães
(Arte de M.C. Escher)
https://www.youtube.com/watch?v=JdgPvripL9A

domingo, 8 de julho de 2018

Carta aos meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya


Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós(...)
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente â secular justiça,
para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.»
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória (...)
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor (...)

Jorge de Sena
(pintura de Goya)
https://www.youtube.com/watch?v=nIpOqxozO18


sábado, 30 de junho de 2018

Romance das doze moças donzelas


Eram doze moças donzelas
todas forradas de bronze:
deu o tranglomango nelas,
não ficaram senão onze.

as onze que elas eram
foram a lavar os pés:
deu o tranglomango nelas,
não ficaram senão dez.

Dessas dez que elas eram
foram cavar uma cova:
deu o tranglomango nelas,
não ficaram senão nove.

Dessas nove que elas eram
foram amassar biscoitos:
deu o tranglomango nelas,
não ficaram senão oito.

Dessas oito que elas eram
todas usavam barrete:
deu o tranglomango nelas,
não ficaram senão sete.

Dessas sete que elas eram
foram cantar por des réis:
deu o tranglomango nelas,
não ficaram senão seis.

Dessas seis que elas eram
fecharam a porta no trinco:
deu o tranglomango nelas,
não ficaram senão cinco.

Dessas cinco que elas eram
comeram arroz com pato:
deu o tranglomango nelas,
não ficaram senão quatro.

Dessas quatro que elas eram
voltaram lá outra vez:
deu o tranglomango nelas,
não ficaram senão três.

Dessas três que elas eram
foram lá por essas ruas:
deu o tranglomango nelas,
não ficaram senão duas.

Dessas duas que elas eram
foram apanhar caruma:
deu o tranglomango nelas,
não ficou senão só uma.

Dessa uma que ela era
foi viver para a cidade:
deu o tranglomango nela,
não ficou senão metade.

Dessa metade que ela era
foi brincar com um peão:
deu o tranglomango nela,
acabou-se a geração.

Popular
(Pintura de Paula Rego)
https://www.youtube.com/watch?v=mjpeCGv7IcI

domingo, 17 de junho de 2018

Aos jacarandás de Lisboa


São eles que anunciam o verão.
Não sei doutra glória, doutro
paraíso: à sua entrada os jacarandás
estão em flor, um de cada lado.
E um sorriso, tranquila morada,
à minha espera.
O espaço a toda a roda
multiplica os seus espelhos, abre
varandas para o mar.
É como nos sonhos mais pueris:
posso voar quase rente
às nuvens altas – irmão dos pássaros –,
perder-me no ar.


Eugénio de Andrade
https://www.youtube.com/watch?v=fhLmzyqrLLo

sábado, 9 de junho de 2018

Imagens...


Imagens que passais pela retina
Dos meus olhos, porque não vos fixais?
Que passais como a água cristalina
Por uma fonte para nunca mais!... 


Ou para o lago escuro onde termina
Vosso curso, silente de juncais,
E o vago medo angustioso domina,
- Porque ides sem mim, não me levais? 

Sem vós o que são os meus olhos abertos?
- O espelho inútil, meus olhos pagãos!
Aridez de sucessivos desertos... 

Fica sequer, sombra das minhas mãos,
Flexão casual de meus dedos incertos,
- Estranha sombra em movimentos vãos.

Camilo Pessanha

(arte de Victor Belém)
https://www.youtube.com/watch?v=VbtkOOZy_qs

segunda-feira, 28 de maio de 2018

Eu, o tempo e a Ana Hatherly


Era uma vez um relógio anacrónico. Quando batia as horas estas rolavam pela sala e depois transformavam-se em lindas maçãs de prata que se penduravam do tecto. De cada vez que uma hora nova rolava pela sala as outras já de prata sorriam pendentes do tecto de modo que naquela sala havia sempre uma espécie de som de riso de prata e quando o relógio dava uma volta completa no quadrante as horas já de prata deixavam-se cair e então o som era mesmo de grandes gargalhadas de prata.

Ana Hatherly
(desenho HN)

segunda-feira, 21 de maio de 2018

A elegia mística do Buçaco















O sol de meio Agosto já ia perto do declínio final. E do alto, desde os degraus da grande Cruz, erguida a prumo sobre a planície, varanda atlântica do Ocidente, via-se em baixo a Beira Litoral, limitada a Norte pelas serranias do Caramulo e da Estrela, desdobradas em toda a sua majestade; em frente, sobre a esquerda, alvejava, mais que os outros povoados, em nítido relevo, a estria longitudinal de Coimbra; e, no fundo, ladeado pelo negro esporão do Cabo Mondego, refulgia, ferido pelo Sol, o Oceano.
Por detrás duma dobra do relevo coimbrão sumiam-se as terras ásperas onde fui nado e as mais amenas dos campos do Mondego, onde me criei. A meus pés desdobrava-se o teatro da minha adolescência; do fundo do vale via subir, como uma névoa, os meus primeiros sonhos. Da minha lira, há muito bissexta, ergueu-se um cântico íntimo de saudade. Depois, vibrando como as velhas cordas, baixei por entre adernos, carvalhas, medronheiros, loureiros e giestas gigantescas, restos da primitiva floresta lusitânica, a aspérrima Via-Sacra, que se afunda na selva, acrescida e replantada pelos frades. Ungi-me de novo do velho espírito do Buçaco, cuja mata sagrada celebra e entoa em cada recanto, de frondes, musgo e sombra, a elegia mística da paixão de Cristo.
Mais uma vez compenetrei-me de que é impossível apreender o sentimento essencial desse lugar único em serra portuguesa, sem refluir às suas origens no primeiro quartel do século de Seiscentos. Muitos dos melhores portugueses, ofendidos pelo domínio opressivo dos Filipes, abalavam para o Brasil, alguns para a Índia e a África e muitos para o Peru. Mas outros, como os carmelitas do Buçaco, refugiaram-se naquilo a que chamaram o deserto, o deserto da floresta, cercada e segredada do mundo, com ermidas e rudíssimas vivendas embebidas na rocha; votaram-se à vida solitária e silenciosa do eremitério frondoso; e deram-se por missão plantar árvores, proteger e amar as árvores e renovar a selva primitiva com algumas espécias sagradas como o cedro.

Jaime Cortesão
https://www.youtube.com/watch?v=O6LpPSUjt5I

terça-feira, 8 de maio de 2018

Experiência no papel


 “QUE COISA SÃO AS NUVENS?”

Enquadramento teórico

·         Lei de Lavoisier ou lei da conservação da massa: “Na Natureza nada se cria e nada se perde, tudo se transforma”.

·         Importância da samplagem na Arte Contemporânea. Samplear é um conceito que tem origem na música e consiste em ( Vide Dicionário Priberam)“gravar e modificar sons através de um sampleador”. No texto de apresentação da exposição Pictures and Cream (2015) na Galeria Cristina Guerra Comtemporary Art“ lê-se: “Os criadores produzem uma constante releitura do caos desta cultura global, anulando distinções entre criação e cópia, ready-made e trabalho original. As noções de criação e originalidade esbatem-se nesta contínua “samplagem” da paisagem cultural. Manipulando formas e formatos pré-estabelecidos, os artistas contemporâneos servem-se delas para descodificar modelos e produzir outras correntes de realidade, ou seja, narrativas alternativas. As narrativas contemporâneas são permanentemente fragmentadas e descentradas, o presente retrata-se numa dimensão anti-narrativa, herdeira de Warhol, Debord ou Godard.”

·         Sabedoria popular: “Do velho se faz novo”. Era o lema dos nossos avós, por necessidade, sem preocupações artísticas. Será muito exagerado considerar que, no actual contexto de uma sociedade consumista, este princípio adquire um sentido ainda mais abrangente e inclui a própria Arte?
                                                                                

Recursos
  •     Canção “Inquietação” de José Mário Branco
  •    Uma estante com livros, CD e DVD representativos das mais variadas  manifestações de arte, nas diversas culturas ao longo dos tempos
  •     Um caixote do lixo (médio)
  •     Filme de Pasolini “Que coisa são as nuvens?”
  •     Papel cenário e marcadores
  •     Computador e vídeoprojector
  •     Um ajudante/preparador.
Descrição da experiência

O preparador começa por ligar a aparelhagem para a audição de “Inquietação” como fundo musical.
https://www.youtube.com/watch?v=D0HPZdpoo3U

Em seguida explica a um grupo de participantes como realizar a experiência devendo os vários elementos entrar em acção ao mesmo tempo, de acordo com as instruções.

      Instruções:
1.Escolher (rapidamente) 4 ou 5 exemplares das obras expostas na estante
2.Colocá-las no caixote do lixo
 Quando todos os elementos do grupo tiverem acabado estas duas tarefas, o preparador despeja o caixote ficando o seu conteúdo em monte, no chão. Retira a canção e liga a aparelhagem para dar início à projeção da cena final do filme de Pasolini “Que coisa são as nuvens?” 

(Duas personagens-marionetas são despejadas numa lixeira e vêem pela primeira vez o céu. Maravilhadas, dialogam:
- E...o que é aquilo?
- Aquelas são...as nuvens.
- E o que são estas nuvens? Como são belas! Ah! Como são belas! Como são belas!
- Dolorosa, maravilhosa, beleza da criação!)
https://vimeo.com/133697523

Por fim, o preparador convida os participantes a escreverem no papel cenário sobre a experiência que acabaram de realizar e coloca de novo a música “Inquietação”.     

HN                    

sábado, 28 de abril de 2018

Que coisa são as nuvens?

“Nunca fui tão livre com agora”
António Lobo Antunes (escritor) e José Tolentino Mendonça (padre e poeta), Moderação Sara Belo Luis,



Vê-los entrar de mão dada. Vê-los a entrarem muito devagar, como que amparados um no outro, já de olho na assembleia que os espera. Vê-los e perceber, nesse curto compasso de tempo gasto pelos dois para irem do fundo do palco até às cadeiras onde vão conversar, que António gosta de José Tolentino e José Tolentino gosta de António. Sentir o amor.
A conversa entre o escritor António Lobo Antunes e o padre e poeta José Tolentino Mendonça estava anunciada como um “grande encontro”. Não sabíamos que a próxima hora iria passar num ai, mas secretamente desejávamos que assim fosse. Chovera grande parte da manhã e, como escreveu um outro poeta, Deus parara o sol sobre Lisboa (vamos lembrarmo-nos disso quando António atirar uma citação sem aviso – “Que coisa são as nuvens?” – e José Tolentino apanhar a referência a um filme de Pasolini). Escrever que nos sentimos abençoados a ouvi-los só parece exagero a quem não teve a sorte de estar no momento certo no auditório do Capitólio – e Deus teve tudo a ver com isso.
O dia em que António conheceu José Tolentino foi o dia em que a escritora Ana Teresa Pereira (“Uma das pessoas mais docemente misteriosas que conheci”) o encontrou na Madeira e lhe ofereceu uma tradução do Cântico dos Cânticos. “O nome do tradutor nada me dizia”, confessa, “mas era um poema de uma grande qualidade, um grande poeta, uma voz extraordinária.”
Se já sentia uma imensa admiração, respeito e inveja dos poetas, aquele livro ajudou-o a aproximar-se da poesia e de Deus, com o qual sempre teve uma relação complicada e conflituosa. “Zango-me imenso com Deus”, confessa, arrancando os primeiros risos da plateia. “Não sou como Voltaire que dizia: 'Cumprimentamo-nos, mas não falamos'. Eu falo, mas de vez em quando zango-me.”
A partir daí, conta, andou constantemente à procura das obras do poeta madeirense, mas continuava sem conhecer o pessoalmente. Até que um dia, Eugénio de Andrade lhe falou nele.
“Ele recebia-me muito bem, no Porto, com vinho fino e uns bolinhos que achava de que eu gostava. Tinha uma casa muito agradável, viam-se as palmeiras e o mar… Vou dizer um poema dele, o primeiro que me vier à cabeça, para vocês verem como ele era...” [e diz “Iremos juntos separados as palavras mordidas uma a uma, taciturnas, cintilantes (…)]
Naquela tarde já longínqua, Eugénio de Andrade contou-lhe que sentia uma enorme inveja de Hermínio Monteiro, o editor da Assírio & Alvim que morrera recentemente, porque tivera a felicidade de morrer de mão dada com o José Tolentino. “Ele contou isto e os seus olhos encheram-se de lágrimas, os meus também... Temos a sorte de estar aqui com um homem excecional.”
O “homem excecional” sorri e aproveita mais uma pergunta colocada pela jornalista Sara Belo Luís (“Os leitores são os crentes da literatura?”, quer saber a moderadora astuta) para responder à declaração de amor acabada de ouvir. Se os leitores “fazem viva a literatura, dando-lhe algo que ela deseja”, se o poema “é como o riscar de um fósforo” e o verso é dado pelos deuses, António Lobo Antunes já não é apenas o escritor. “É a encarnação da sua dádiva, na sua desmesura.”
Os leitores, esses são a consolação, diz Tolentino. “A literatura ainda nos deixa nesta margem, só por causa deles é que os escritores não desistem”, acredita. “Os leitores dão-nos a ilusão (ou a verdade), com a sua convicção e amor, de atravessar o rio, de passar para lá da margem, de as palavras serem aquilo que elas sonham ser. Por isso os leitores são essenciais para a literatura. E a literatura serve para nos salvar, para nos ajudar a viver. Avançamos de mãos dadas.”
[Escreva-se, antes de assunções rápidas e erradas, que não foi por essa razão que os dois entraram de mão dada no palco. Foi num entras-tu-primeiro-não-entras-tu que acabaram por entrar assim, e afinal não podia ter sido doutro modo.]
António e José Tolentino são parecidos – e não é apenas no amor. Quando escrevem não pensam em ninguém, é uma inquietação, uma vontade de ser. E são ambos bichos. Desta vez, é o poeta quem o diz, e é como se ouvíssemos o escritor. “Não sou um homem convencionado e, nesse sentido, não se lhe pode pedir que escreva para um leitor. Escrevo para um buraco negro.”
Instado a comentar, António olha para a plateia e ri-se. “Estou aqui a pregar no deserto, mas vocês interessam-se muito mais pelo Facebook.” Reparou – como não? – que na primeira fila há vários smartphones à vista, e então dispara que tem pena de ver pessoas de dedo no telemóvel, sem nunca olharem umas para as outras, como já tinha pena dos casais calados nos restaurantes. E das pessoas que não leem, que se privam da arte.
“Não tenho telemóvel, nem computador, nem cartão de crédito. Sou livre, não tenho nada disso. Sou um moderno franciscano. Agora, nem tenho carro. Nunca fui tão livre como agora.”
Invejamos e aplaudimos. E no rescaldo dos aplausos o escritor lembra-se de mais um poema, desta vez de Carlos Oliveira, que fala dos abismos das coisas. Diz dois ou três versos e ironiza: “Isto não é melhor do que um SMS?” Mas, como está tudo ligado, volta atrás, à troca entre o escritor e os leitores. Ao amor. “Todo o escrever é um ato de amor. Um livro só está realmente escrito quando tem um leitor, nem importa que seja só um.”
José Tolentino concorda com António (“A razão que nos faz escrever é o amor”) e acrescenta-lhe um outro tema: “Escrever é uma forma de contrariar a morte, de contrariar o nada. A criação é a possibilidade de riscar um fósforo no escuro. Num romance, encontramos a nossa possibilidade, a tal mão que nos vai ajudar a caminhar num corredor vazio. É isso que a literatura nos oferece.”
Não lhe peçam é para, nesta equação, substituir a literatura por religião, ri-se o padre e poeta. Porque se a literatura nos leva para outra margem, “a religião é o salto no escuro”, nota.
É a deixa para voltar a entrar António Lobo Antunes, que logo se diz “um miraculado”. A história de uma meningite aos 8 meses que pôs o avô paterno a fazer uma promessa já é conhecida, mas o escritor pode contá-la cem vezes e é sempre uma delícia. Se o neto não morresse, esse avô, homem de grande devoção a Santo António, levá-lo-ia a fazer a primeira comunhão a Pádua. Coube ao pai, jovem médico de 25 anos, fazer a punção lombar que o tirou do coma – ou terá sido Santo António a fazer um milagre? Certo é que o pequeno António foi mesmo a Itália e prometeu, de mão na tumba do santo, que se um dia tivesse um filho dar-lhe-ia o seu nome e levá-lo-ia também ele até Pádua.
A viagem de um mês por Itália, também com os pais, teve várias peripécias: António foi atropelado por uma bicicleta na Suíça, e perdeu-se na Praça de São Marcos, em Veneza. A discussão entre o avô e um italiano seria épica e terminaria com uma afirmação finalíssima – “Santo António era de Lisboa e de Portugal” e mainada! No fim, o escritor herdaria a devoção ou pelo menos à-vontade suficiente para pedir cura para os dois cancros que veio a ter em adulto.
Agora, ouve o padre e ouvimos nós (e com um sorriso porque Lobo Antunes é um mestre a fazer-nos rir a falar de coisas sérias): “Da primeira vez, pedi-lhe imensa desculpa e curei-me. Da segunda, voltámos a falar.” Com Deus seria sempre mais difícil, confessa. Falta-lhe intimidade, quase o trata por Senhor Doutor, sente-se como o drogado que pede a moedinha. “A nossa relação é pedinchona, estou farto de pedir cigarros a Deus e a maior parte das vezes ele nem olha, claro.”

21 de Abril de 2018
Jornalista Rosa Ruella