domingo, 30 de janeiro de 2022

Concerto de Bach

Nunca dormi manhã fora,

acordavam-me os eléctricos matutinos

e com frequência os meus próprios versos também.

Arrancavam-me pelos cabelos ao edredão

e levavam-me para a cadeira,

e assim que limpava os olhos

obrigavam-me a escrever.


Preso com doce saliva

aos lábios de um momento único,

não pensava na salvação da minha mísera alma,

e, em vez da glória eterna, 

desejava um instante breve

de prazer fugaz.


Os sinos elevavam-me em vão da terra,

eu agarrava-me a ela com unhas e dentes.

Estava cheia de perfumes

e mistérios excitantes.


Quando olhava à noite para o céu

não era o céu que procurava.

Horrorizavam-me, sim, os buracos negros

situados no limite extremo do universo

que são ainda mais terríveis 

do que o próprio inferno.


Mas ouvi de repente o som de um cravo.

Era um concerto de Johann Sebastian Bach

para oboé, cravo e cordas.

De onde vinha aquela música?

Não sei, mas da terra não era.


Ainda que não tivesse provado vinho,

cambaleei um pouco

e tive de me agarrar

à minha própria sombra.


Jaroslav Seifert (tradução de Vasco Gato)

Pintura de Paul Klee "Ao estilo de Bach"

https://www.youtube.com/watch?v=TPw5TvDPRoc


domingo, 23 de janeiro de 2022

Ciclista

Talvez a ti apenas

condutor veloz

e desabrido

que decerto vai

já bem longe,

a acelerar, eu deva

agradecer a minha

queda, este derrame 

súbito na berma

de uma estrada de província

arborizada. Aqui,

meio das ervas, 

a bicicleta adiante,

caída igualmente

pelo chão,

roda desfeita

do embate contra

a árvore próxima. De

aqui, da queda,

outro olhar

me surpreende,

outra consciência

toma conta

de como a tudo

vejo. As árvores

em volta, o asfalto

desgastado, macilento,

o verde esmaecido

dos campos serenos

da colheita, a própria

luz da tarde,

enquanto um solitário

pio corta o

seu silêncio. Talvez

eu deva agradecer-te,

se, por vezes,

ficar caído tem

uma qualquer doçura

de interromper o esforço,

romper de vez 

a fantasia tonta,

inconsequente, de 

permanecer

no movimento.


Bernardo Pinto de Almeida

Pintura de Magritte

https://www.youtube.com/watch?v=mqtEISLWtoM

domingo, 9 de janeiro de 2022

Lourdes Castro, Rua da Olaria

O pardal do campo descobre muitos lugares para
                uma casa
a poucos metros de mim
mundos sobrepostos transitam, preenchem o 
                silêncio
e para o ânimo deles
quem não se levantaria cedo?

A minha arte é uma espécie de pacto:
não distingo as áreas selvagens das cultivadas
e elas não distinguem a minha sombra
da minha luz

José Tolentino Mendonça

https://www.youtube.com/watch?v=1qrZKMfVX90

sábado, 1 de janeiro de 2022

Tempo



“Não te desejo um presente qualquer,

 Desejo-te somente aquilo que a maioria não tem.

 Tempo, para te divertires e para sorrir;

 Tempo para que os obstáculos sejam sempre superados

 E muitos sucessos comemorados.

 Desejo-te tempo, para planear e realizar,

 Não só para ti mesmo, mas também para doá-lo aos outros.

 Desejo-te tempo, não para ter pressa e correr,

 Mas tempo para te encontrares a ti mesmo,

 Desejo-te tempo, não só para passar ou para vê-lo no relógio,

 Desejo-te tempo, para que fiques;

 Tempo para te encantares e tempo para confiar em alguém.

 Desejo-te tempo para tocar as estrelas,

 E tempo para crescer, para amadurecer.

 Desejo-te tempo para aprender e acertar,

 Tempo para recomeçar, se fracassar.

 Desejo-te tempo também para poder voltar atrás e perdoar.

 Para ter novas esperanças e para amar.

 Não faz mais sentido protelar.

 Desejo-te tempo para ser feliz.

 Para viver cada dia, cada hora como um presente.

 Desejo-te tempo, tempo para a vida.

 Desejo-te tempo. Tempo. Muito tempo!”

 

 Elli Michler

https://www.youtube.com/watch?v=3Uo0JAUWijM