domingo, 30 de janeiro de 2022

Concerto de Bach

Nunca dormi manhã fora,

acordavam-me os eléctricos matutinos

e com frequência os meus próprios versos também.

Arrancavam-me pelos cabelos ao edredão

e levavam-me para a cadeira,

e assim que limpava os olhos

obrigavam-me a escrever.


Preso com doce saliva

aos lábios de um momento único,

não pensava na salvação da minha mísera alma,

e, em vez da glória eterna, 

desejava um instante breve

de prazer fugaz.


Os sinos elevavam-me em vão da terra,

eu agarrava-me a ela com unhas e dentes.

Estava cheia de perfumes

e mistérios excitantes.


Quando olhava à noite para o céu

não era o céu que procurava.

Horrorizavam-me, sim, os buracos negros

situados no limite extremo do universo

que são ainda mais terríveis 

do que o próprio inferno.


Mas ouvi de repente o som de um cravo.

Era um concerto de Johann Sebastian Bach

para oboé, cravo e cordas.

De onde vinha aquela música?

Não sei, mas da terra não era.


Ainda que não tivesse provado vinho,

cambaleei um pouco

e tive de me agarrar

à minha própria sombra.


Jaroslav Seifert (tradução de Vasco Gato)

Pintura de Paul Klee "Ao estilo de Bach"

https://www.youtube.com/watch?v=TPw5TvDPRoc


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