domingo, 27 de janeiro de 2019

Lei sálica

     
Está representada uma mulher gordinha, de lado para nós,  talvez com 35 anos, de olhos grandes e lábios pintados. Traz um vestido decotado com  pregas à frente (será um avental?) e mais justo atrás , mas calça uma espécie de pantufas desirmanadas. Na cabeça traz uma touca que lembra as usadas pelas mulheres de épocas passadas. Carrega um grande peso às costas aqui representado por um pedaço de terra com árvores.

             As mulheres da família sempre 
          tiveram um jeito quase póstumo
          de existir: guardar o lume
          em silêncio, comer depois de
          servir os outros, morrer primeiro

          Saíam à hora de ponta do destino
          para lerem os caminhos perdidos
          e coleccionavam a abdicação
          em caixinhas de folha, entre bilhetes
          caducados ou dentes de infâncias alheias.

          Esperavam a vida toda por uma vida
          próxima, de alma presa a alfinetes
          no vestido preferido para o enterro,
          os passos medidos nas suas varandas 
          a dar para o fim do mundo.

          Retomo-lhes às vezes os gestos
          neste meu exílio inventado,
          mas acaba aqui: vou encher de corpo
          a sombra, mesmo que nem tempo
          me reste já para a pesar.

          Inês Dias
          (pintura de Armanda Passos)
          https://www.youtube.com/watch?v=o0ZLw3aSsyg

domingo, 20 de janeiro de 2019

Lisboa (1)


              por trás dos muros da cidade
           no seu coração profundo de alicerces
           de argilas e de sísmicos arroios - cresce uma voz
           que sobe e fende a brandura das casas

            da escrita dos inumeráveis povos quase
            nada resta - deitas-te exausto na lâmina da lua
            sem saberes que o tejo te corrói e te suprime
            de todas as idades da europa

            mais além - para os lados do corpo - permanece
            a tosse dos cacilheiros os olhos revirados
            dos mendigos - o tecto onde um navio
            nos separa de um vácuo alimentado a soro

            plátanos brancos recortam-se luminescentes no olhar
            de quem nos olha contra um céu desesperado - jardim
            de íris açucenas palmeiras cobertas de rocio e
            a ponte que nos leva aos campos do sul - lisboa

            lugar derradeiro do riso
            que já não te pode salvar do cemitério dos prazeres

            e morres
            carregado de tristezas e de mistérios - morres 
            algures
            sentado numa praceta de bairro - o olhar fixo
            no inferno marítimo das aves

            Al Berto
            (pintura de Cândido Costa Pinto)
            https://www.youtube.com/watch?v=AMJ3YivXWRY

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

As escavações

           Esta cidade é aquela que ficou
         dentro de nós. Depois escavaremos
         porque outras mais existem. São aquelas
         invisíveis agora, mas que havia

         ao longo das camadas sobrepostas
         pelo tempo ou talvez só pela cinza
         ardente, pelos fetos destas chamas
         mais altas, pela febre em que perdemos

         a memória. De novo, ao procurá-las
         talvez se encontrem próximas de um rio
         que as venha reflectir. Serão apenas

         não os jardins, as ruas, estas casas
         mas a pureza extrema em que se afastam
         de nós. Iguais ao nada. Sem imagens.

         Fernando Guimarães
         (street art - Whils/Pichel Pancho)
         https://www.youtube.com/watch?v=pnLaYkogqtU

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

E M Melo e Castro


INFOPOEMA



POESIA VISUAL
todos os poemas são visuais

porque são para ser lidos

com os olhos que veem

por fora as letras e os espaços

mas não há nada de novo

em tudo o que está escrito

é só o alfabeto repetido

por ordens diferentes

letras palavras formas

tão ocas como as nozes

recortadas em curvas e lóbulos

do cérebro vegetal : nozes

os olhos é que veem nas letras

e nas suas combinações

fantásticas referências

vozes sobretudo da ausência

que é a imagem cheia

que a escrita inflama

até ao fogo dos sentidos

e que os escritos reclamam

para se chamarem o que são

ilusões fechadas para

os olhos abertos verem





                      https://www.youtube.com/watch?v=y1l_PmLPqQE