sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Olhão






Vila cubista chamaram a Olhão, e , de facto, a vol d'oiseau, parece a casaria projectar-se duma tela de Picasso para ludíbrio dos olhos afeitos à ordem objectiva das três dimensões. De um prédio para o outro as açoteias e fachadas imbricam-se, acavalam-se, sobrepõem-se, desarticulam-se, anuladas pela brancura e pela miragem as leis da perspectiva e do volume. São milhares de cubos em equilíbrio instável, paradoxal, absurdo, como cantarias duma Babel juncando um campo raso. E todavia, deste mar revolto de planos e desta fanfarra endiabrada de branco, filtra-se uma sensação de pureza, de banho auroral, como rescende o perfume dum canteiro de açucenas. E dá vontade de ali ficar, à vista da ria, dum azul ideal de iluminura, entre o céu duma diafaneidade vaporosa, onde mal se aguentam nuvens brancas, e aquele tablado branco, escapo à imaginação mais desmedida.
É com o sol - e o sol é o xerife sempre presente desta terra que, sem a Nossa Senhora do Rosário, padroeira, íamos dizer sarracena - que é preciso ver Olhão do alto da sua torre. Do moinho do Levante ao «Mundo Novo», onde a telharia fresca de Marselha põe uma barra sanguínea, rola e flameja a alterosa procela de branco. Um zimbório vermelho, que emerge e sobe no ar como balão de arraial, a cúpula da Soledade, incerta se cobre igreja se mesquita, o vão negro das frestas e até o rasgão oblongo das ruas liquefazem-se no dilúvio de alvaiade.
O próprio areal da ria aparece marchetado de branco, das mil placas deixadas pela água da baixa-mar. E por cima da selva de mastros, que povoam a pequena angra azul, à espalda das esfumadas ilhas da Armona e da Culatra, longa esta e à flor das águas como um enorme cetáceo adormecido, lá onde céu e mar se confundem, tudo é uma toalha láctea, irisada dum leve, levíssimo matiz de oiro.



sábado, 25 de agosto de 2018

A Terra e a Arte de Aquilino





O caso de Aquilino é diferente. Este é, por contraste bravio, beirão das alturas. E para lhe compreender certa rudeza de alma, negrume de juízos, realismo feroz, gosto e jeito desabrido de vincar opiniões contrárias, parece-nos útil considerar seu ninho de águia, o áspero planalto onde lhe cresceram as rémiges e encurvaram as garras. Tivemos a fortuna de fazer da sua casa de Soutosa o centro irradiante de pesquisa ao que havia de mais característico entre o Paiva e o Távora, entre Lamego e Vila Nova de Paiva, sobre o chão das serras da Lapa e Nave.
A moradia de Aquilino, a 850 metros de altitude, é uma espécie de Terra da Promissão, ao cabo dos desertos. A terra do planalto, à volta, é seca, áspera, e tão carregada de penhas grandiosas e redondas - rochas "arrebanhadas" - como se nos encontrássemos a meio duma floresta de tortulhos megalíticos que, ao descer duma dessas massas glaciárias dos primevos do planeta, houvessem petrificado.
A planura paira e pende sobre as vertentes dos rios, que irradiam em torno. Para ali chegar, vindo dos quatro rumos, atravessam-se os cursos altos do Vouga, do Paiva, do Távora e de mais de que um tributário do Mondego. Na terra, recoberta de piorno e urzes, correm as lebres e as perdizes; cava-se o fojo do lobo e da raposa. E, de noite, se pomos os olhos no céu límpido e profundo, empolga-nos um misto de assombro e de terror sagrado. Sobre nós palpitam vias lácteas; pululam mundos faiscantes. É como se o Deus do Velho Testamento surgisse lá do fundo envolto na sarça ardente do Universo em plena criação.
Jamais vi construções mais sólidas, rudes e escuras do tempo e do granito, que, por exemplo as de Peva, ou aquelas de Ariz, encostadas às penedias, fazendo corpo com elas, como se um canteiro ciclópico as houvesse talhado na mesma fraga.
Mas recolhidos à vivenda de Aquilino, cercada pela quinta, onde as fruteiras pendem carregadas de pomos, e os pinheiros e os castanheiros dão sombra tutelar e o pão dos serranos, as "Terras do Demo", apregoadas pelo escritor, parecem-nos mera hipérbole e enfeite literário.
A primeira visita que fizemos foi à Senhora da Lapa, centro de romarias, célebre outrora, hoje em declínio(...)
Mas o templo é o mais singular que possa imaginar-se e também o mais acomodado ao selvático mundo de penhas em que assenta. Construído sobre duas pequenas fragas, integra-se e prolonga-se no seu âmago. Em vez de naves, os interstícios das fragas oferecem circulação aos visitantes. A capela do Sacramento, a gruta-altar da Virgem e um pitoresco presépio da escola de Machado de Castro - tudo se entranha nessa parte troglodítica do templo.

Jaime Cortesão
https://arquivos.rtp.pt/conteudos/quando-os-lobos-uivam-episodio-01/

sábado, 11 de agosto de 2018

A propósito de um eclipse (27/07/2018)



Que estranho, de repente
a lua ficou vermelha,
envolta em poeira cósmica,
nuvem de algodão colorido
vogando ao sabor da brisa.
Será do eclipse?

Um tum tum muito certinho
é o coração da lua a bater.
Inspiro o ar bem devagar…
Hum, sabe a terra molhada!
À volta um silêncio intrigante.
Será do eclipse?

Claro. Só pode...
Um eclipse é algo muito belo e transcendente...

Tão convencional!!!
Segrega ao meu ouvido uma voz bem conhecida.

Ok, podem fazer delete...


HN
11 Agosto 2018
(pintura de Van Gogh)
https://www.youtube.com/watch?v=n9xOl8qZ7tc