domingo, 28 de maio de 2023

Aberto todos os dias

O mundo
aberto lá fora. Difícil cansar-me dele. O céu
a entrar pela janela. O músculo do homem comum.
As laranjeiras de Córdova. Brindar com
água da
chuva. Os peixes do Nilo urinando na
mesma água onde nadam. O vinho que fez
um estágio nas caves do Douro
e passou. A lua a quem eu uivo a cada noite
(em segredo). Um relâmpago à janela:
electrocardiograma
de Deus. A orgia
dos seixos na espuma. Um ministro que mentiu.
Cerejas no mês de Maio. Sardinhas 
no mês 
de Junho. Os pés que saem da areia ornados 
com missangas de prata. Os enfermeiros
exaustos que saem de
mais um turno. A Vitória de Samotrácia parecendo atrasada
perguntando quelle heure est-il? à estátua da
Vénus de Milo. Jesus Cristo
num
decote. A maldade de Putin. A carne
de um dióspiro. E o
ministro não se demite. Nem um 
só dia desperdiçado. Estar à disposição do mundo. Como
quem ergue a verdade com a luva
da linguagem.

João Luís Barreto Guimarães
pintura de Edward Hopper



domingo, 21 de maio de 2023

Regresso


Poderia regressar vendada, triunfantes
a porta, a chave e como rodá-la, os meus encontros.
Aqui, o armário onde arrumei a primeira biblioteca
ali uma lição de círculos e de trópicos
a trajectória circular do meu Globo.

O que mudou mudou, o essencial ficou
inalterado - a secretária baixa, os cadernos
escritos com lápis da Viarco e uma borracha.
Por eles abri a porta a uma torrente inexplicável
feita de gente que nunca vi, nem conheci, mas
que fiz nascer e baptizei com nomes que trouxe
de cartórios ignorados e outros rostos(...)

Regresso a estes cantos e ponho as mãos 
nestes lugares como se esta casa fosse um clone
prévio do meu corpo, e só descanso quando me 
escondo entre os lençóis de linho em cuja superfície 
quando era moça deixava nódoas cor de vinho.

Aqui, tudo o que bate à janela,  como a chuva
desordenado e bruto, em escrito, não é produto
é uma chamada por alguém que está escondido
noutro mundo.

Lídia Jorge
Arte de Lourdes Castro

segunda-feira, 1 de maio de 2023

Vagas de Amplitude

Vagas de amplitude sobre o país mesquinho.
Nitidez de ondas que ascendem, embriagam
até à espuma do espaço. O inominável espraia-se
dissipando o insignificante, o turvo, o tépido.
Quase uma catástrofe ou as imagens de um sonho.
Mas o ritmo é soberano e simples e as perspectivas lisas.
As ondas derrubam as estátuas, os demónios e os deuses.
O ar fica brilhante e limpo na unidade do silêncio.
A igualdade estabelece-se no esparso e no diverso.
Frescura imensa do supremo, suspensão indefinida.
Equilíbrio ligeiro. A sabedoria apaga-se
no próprio ar que a incendeia. A respiração é transparente.
Tudo é incomparável mas tudo é simples.
Tocamos as teclas da terra com o orvalho do sol.
Vestidos de vento dançamos com o claro enigma.
Já não há fronteiras entre o abandono e a vigília.
Espáduas dilaceradas são agora tranquilas dunas.
Ouve-se o riso pacífico e dourado de marulhantes mulheres.
Tanta embriaguez clara, tanta ligeira liberdade.

António Ramos Rosa
Caricatura de João Abel Manta