domingo, 31 de janeiro de 2016

Narciso

                                 
               O desenho impreciso

               De cada rosto humano, reflectido!


               Mas o velho Narciso


               Continua fiel e debruçado


               Sobre o ribeiro...


               Por que não há-de ver-se inteiro


               Quem todo se deseja revelado?


               Devorador da vida lhe chamaram,


               A ele, artista, sábio e pensador,


               Que denodadamente se procura!


               À movediça e trágica tortura


               De velar dia e noite a líquida corrente


                        Que dilui a verdade,


               Quiseram juntar a permanente


               Ironia


               Desse labéu de pérfida maldade


               Que turva mais ainda a imagem fugidia...



               Miguel Torga

              (pintura de Caravaggio) 
               https://www.youtube.com/watch?v=btn7E8yYvaM

domingo, 24 de janeiro de 2016

Voz que se cala

                 

                   Amo as pedras, os astros e o luar
                   Que beija as ervas do atalho escuro,
                   Amo as águas de anil e o doce olhar
                   Dos animais, divinamente puro.

                   Amo a hera, que entende a voz do muro
                   E dos sapos, o brando tilintar
                   De cristais que se afagam devagar,
                   E da minha charneca o rosto duro.

                   Amo todos os sonhos que se calam
                   De corações que sentem e não falam,
                   Tudo o que é Infinito e pequenino!

                   Asa que nos protege a todos nós!
                   Soluço imenso, eterno, que é a voz
                   Do nosso grande e mísero Destino!...

                   Florbela Espanca
                   (pintura de Júlio Resende)
                   http://www.youtude.su/watch.php?v=gHi-w21os7E&spfreload=10

domingo, 17 de janeiro de 2016

O Norte


Primeiro, as verdades.
O Norte é mais Português que Portugal.
As minhotas são as raparigas mais bonitas do País.
O Minho é a nossa província mais estragada e continua a ser a mais bela.
As festas da Nossa Senhora da Agonia são as maiores e mais impressionantes que já se viram. Viana do Castelo é uma cidade clara. Não esconde nada. Não há uma Viana secreta. Não há outra Viana do lado de lá. Em Viana do Castelo está tudo à vista. A luz mostra tudo o que há para ver. É uma cidade verde-branca. Verde-rio e verde-mar, mas branca. Em Agosto até o verde mais escuro, que se vê nas árvores antigas do Monte de Santa Luzia, parece tornar-se branco ao olhar. Até o granito das casas.
Mais verdades.
No Norte a comida é melhor. O vinho é melhor. O serviço é melhor. Os preços são mais baixos. Não é difícil entrar ao calhas numa taberna, comer muito bem e pagar uma ninharia. Estas são as verdades do Norte de Portugal.
Mas há uma verdade maior. É que só o Norte existe. O Sul não existe. As partes mais bonitas de Portugal, o Alentejo, os Açores, a Madeira, Lisboa, et caetera, existem sozinhas. O Sul é solto. Não se junta. Não se diz que se é do Sul como se diz que se é do Norte. No Norte dizem-se e orgulham-se de se dizer nortenhos. Quem é que se identifica como sulista? No Norte, as pessoas falam mais no Norte do que todos os portugueses juntos falam de Portugal inteiro. Os nortenhos não falam do Norte como se o Norte fosse um segundo país. Não haja enganos. Não falam do Norte para separá-lo de Portugal. Falam do Norte apenas para separá-lo do resto de Portugal. Para um nortenho, há o Norte e há o Resto. É a soma de um e de outro que constitui Portugal. Mas o Norte é onde Portugal começa. Depois do Norte, Portugal limita-se a continuar, a correr por ali abaixo. Deus nos livre, mas se se perdesse o resto do país e só ficasse o Norte, Portugal continuaria a existir. Como país inteiro. Pátria mesmo, por muito pequenina. No Norte. Em contrapartida, sem o Norte, Portugal seria uma mera região da Europa. Mais ou menos peninsular, ou insular.
É esta a verdade. Lisboa é bonita e estranha mas é apenas uma cidade. O Alentejo é especial mas ibérico, a Madeira é encantadora mas inglesa e os Açores são um caso à parte. Em qualquer caso, os lisboetas não falam nem no Centro nem no Sul - falam em Lisboa. Os alentejanos nem sequer falam do Algarve - falam do Alentejo. As ilhas falam em si mesmas e naquela entidade incompreensível a que chamam, qual hipermercado de mil misturadas, Continente.
No Norte, Portugal tira de si a sua ideia e ganha corpo. Está muito estragado, mas é um estragado português, semi-arrependido, como quem não quer a coisa. O Norte cheira a dinheiro e a alecrim. O asseio não é asséptico - cheira a cunhas, a conhecimentos e a arranjinho. Tem esse defeito e essa verdade. Em contrapartida, a conservação fantástica de (algum) Alentejo é impecável, porque os alentejanos são mais frios e conservadores (menos portugueses) nessas coisas.
O Norte é feminino. O Minho é uma menina. Tem a doçura agreste, a timidez insolente da mulher portuguesa. Como um brinco doirado que luz numa orelha pequenina, o Norte dá nas vistas sem se dar por isso. As raparigas do Norte têm belezas perigosas, olhos verdes-impossíveis, daqueles em que os versos, desde o dia em que nascem, se põem a escrever-se sozinhos. Têm o ar de quem pertence a si própria. Andam de mãos nas ancas. Olham de frente. Pensam em tudo e dizem tudo o que pensam. Confiam, mas não dão confiança. Olho para as raparigas do meu país e acho-as bonitas e honradas, graciosas sem estarem para brincadeiras, bonitas sem serem belas, erguidas pelo nariz, seguras pelo queixo, aprumadas, mas sem vaidade. Acho-as verdadeiras. Acredito nelas. Gosto da vergonha delas, da maneira como coram quando se lhes fala e da maneira como podem puxar de um estalo ou de uma panela, quando se lhes falta ao respeito. Gosto das pequeninas, com o cabelo puxado atrás das orelhas, e das velhas, de carrapito perfeito, que têm os olhos endurecidos de quem passou a vida a cuidar dos outros. Gosto dos brincos, dos sapatos, das saias. Gosto das burguesas, vestidas à maneira, de braço enlaçado nos homens. Fazem-me todas medo, na maneira calada como conduzem as cerimónias e os maridos, mas gosto delas. São mulheres que possuem; são mulheres que pertencem. As mulheres do Norte deveriam mandar neste país. Têm o ar de que sabem o que estão a fazer. Em Viana, durante as festas, são as senhoras em toda a parte. Numa procissão, numa barraca de feira, numa taberna, são elas que decidem silenciosamente. Trabalham três vezes mais que os homens e não lhes dão importância especial. Só descomposturas, e mimos, e carinhos.

Miguel Esteves Cardoso
(pintura de Sonia Delaunay)
https://www.youtube.com/watch?v=enETSUKdjH0

domingo, 10 de janeiro de 2016

Ode à paz


Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
Pela branda melodia do rumor dos regatos,

Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História,
                               deixa passar a Vida!


Natália Correia
(pintura de Carmo Pólvora)
https://www.youtube.com/watch?v=92IdbcZZjeQ

sábado, 2 de janeiro de 2016

As meninas

                       

                         lavam os dentes, já tomaram banho,
                         e em suas camisinhas de flanela
                         dão boas-noites numa tarantela,
                         são cinco-réis de gente no tamanho.

                         as meninas já estão a bom recato.
                         não queriam ir dormir. choramingaram.
                         houve histórias de fadas em que entraram.
                         depois, tombou o livro num sapato.

                         amanhã de manhã levam vestida
                         a blusinha de lã azul xadrez,
                         a saiinha encarnada, as meias pretas,

                         mas no país da bela adormecida
                         há flores e pintainhos e talvez
                         um gato, um peixe, um cão e borboletas.

                          Vasco Graça Moura
                          (pintura de Domingos Sequeira)
                          https://www.youtube.com/watch?v=DvQLdN8pHwE