domingo, 30 de dezembro de 2012

Árvores


O que tentam dizer as árvores
no seu silêncio lento e nos seus vagos rumores,
o sentido que têm no lugar onde estão,
a reverência, a ressonância, a transparência
e os acentos claros e sombrios de uma frase aérea.
E as sombras e as folhas são a inocência de uma ideia
que entre a água e o espaço se tornou uma leve integridade.
Sob o mágico sopro da luz são barcos transparentes.
Não sei se é o ar se é o sangue que brota dos seus ramos.
Ouço a espuma finíssima das suas gargantas verdes.
Não estou, nunca estarei longe desta água pura
e destas lâmpadas antigas de obscuras ilhas.
Que pura serenidade da memória, que horizontes
em torno do poço silencioso! É um canto num sono
e o vento e a luz são o hálito de uma criança
que sobre um ramo de árvore abraça o mundo.

António Ramos Rosa
http://www.youtube.com/watch?v=xk3KMv7F-N0&playnext=1&list=PLYmwFR_XLSpbu2kgRCpPyFp1oam9OOBmE&feature=results_video

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Loa


                         É nesta mesma lareira,
                         E aquecido ao mesmo lume,
                         Que confesso a minha inveja
                         De mortal
                         Sem remissão         
                         Por esse dom natural,              l,
                         Ou divina condição,
                         De renascer cada ano,
                         Nu, inocente e humano
                         Como a fé te imaginou,
                         Menino Jesus igual
                         Ao do Natal
                         Que passou.

                         Miguel Torga
                         http://www.youtube.com/watch?v=dxf7dIUiP4w

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Eu sou do tamanho do que vejo


Da minha aldeia veio quanto da terra se pode ver no Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não, do tamanho da minha altura...
Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.

Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.


Fernando Pessoa
https://www.youtube.com/watch?v=1t2G1HGyz-8

domingo, 9 de dezembro de 2012

Finisterra


O Cristo de Finisterra apareceu na praia de Cabanas onde o mar o deixou com muita mansidão e quando pode e lho pedem com devoção ajuda os marinheiros na sua luta contra as ondas e outros perigos, Santo Cristo de Finisterra, santo de barba dourada, ajuda-me a subir a laje de Touriñana, a sua barba dourada agora está preta, reconhece-se que o tempo a enegreceu, o tempo e os desgostos enegrecem tudo que tocam, o Cristo meteu os mouros na cintura quando eles se sublevaram e o quiseram ofender, os piratas berberescos numa descoberta que fizeram por aqui na segunda metade do século XVII mofaram dele, um quis deitá-lo abaixo com um golpe de cimitarra mas o Cristo olhou-o fixamente, deixou-o imóvel como uma estátua e deu-lhe uma amaricada e humilhante voz de flauta, os mouros arrependeram-se da sua atitude e o Cristo deixou-os partir, diz a tradição que se converteram ao cristianismo e se baptizaram na vila de Cee, desde então aos de Finisterra chamam mouros pelo contorno, os de Noia são bêbados, os de Muros são desajeitados, os de Finisterra  são mouros e os de O Son são bucheiros, o Cristo de Finistera tem fama de brigão, não se sabe se justa ou injustamente, e de andar aos tiros quando se confronta, o Cristo de Finisterra tem uma pistola de ouro, e tem de ser de ouro tendo em conta que aos de Muros mata-os no monte Louro, pode ser que dona Onofre cometa os seus pecados como toda a gente, os seus pecados de carne, para isso fez Deus a carne pecadora, a dor de coração e o propósito da emenda, etc.
 

domingo, 2 de dezembro de 2012

Colegas


Encontrar os colegas de curso, 16 ou 17 anos depois,  e ver como de comum temos o estarmos todos mais gordos e lembrarmo-nos embaraçadamente de quem éramos. O passado, embora deixando saudades, parece ser sempre uma vergonha qualquer, e viver é engordar.
Pensei logo que não devia ter aparecido com a roupa da tarde. Devia ter ido a casa, tomar um segundo banho, fazer outra vez a barba, vestir a camisa que comprei no estrangeiro, fazer de conta que visto sempre assim, casual, sem dar importância. Parecer ainda mais bonito. Devo ser o único mais bonito do que era aos 20 anos. Não por algum milagre. Apenas porque aos 20 anos eu assustava um morto. Tinha só ossos e cabelo despenteado, estio, azeiteiro. Era um bicharoco de olhos vesgos e grandes, atrás de óculos dourados com tamanho de pneus. Claro que hoje, charmoso, estou muito melhor. Isso é raro acontecer com as pessoas. Talvez apenas o engenheiro Álvaro, como eu, tenha ficado favorecido. Durante horas olhei e convenci-me de era uma presença muito avulsa no jantar, sem referência. No fim, caramba, a revelação. Muito estranho. Está mais novo. Deve comer com juízo e deve estar feliz.
Acho que procuramos os sinais da felicidade quando reencontramos alguém depois de uma longa separação. A possibilidade de ter corrido tanta coisa mal é muita, e a expectativa de saber se cada um de nós escapou à atrocidade é grande. Nunca escapamos inteiramente à atrocidade. Temos sempre as nossas mazelas que, num jantar assim, procuramos esconder com um segundo banho, a barba outra vez e a camisa do estrangeiro. Deve ser isso a que se chama festa, ou então pode ser mesmo uma borracha sobre o passado. Um banho e uma camisa para apagar o passado.
Há qualquer coisa nos tempos de escola que nos revela para sempre. Hoje, uns advogados, outros funcionários nem sei de quê, procuradores, juízes ou escritores, somos sempre um certo regresso à simplicidade de tempos idos, como se fosse impossível criar uma distância demasiada em relação à memória guardada. Serei sempre, creio, o cachopo melómano, meio rockeiro e embasbacado dos meus 20 anos. É um pouco como voltar a casa, estar em família. Fica-se a mesma criatura desmascarada do costume. Isso, sem dúvida, é o melhor.
Nunca voltaria a estudar Direito. Mas não me importaria de repetir os colegas. Sobretudo se pudermos contar com a lealdade de o empertigado da vida de hoje não nos retirar a cumplicidade da vida de então. Se isso se perder, prefiro não voltar a jantar assim. E não desperdiço sequer a minha camisa estrangeira.