segunda-feira, 21 de maio de 2018

A elegia mística do Buçaco















O sol de meio Agosto já ia perto do declínio final. E do alto, desde os degraus da grande Cruz, erguida a prumo sobre a planície, varanda atlântica do Ocidente, via-se em baixo a Beira Litoral, limitada a Norte pelas serranias do Caramulo e da Estrela, desdobradas em toda a sua majestade; em frente, sobre a esquerda, alvejava, mais que os outros povoados, em nítido relevo, a estria longitudinal de Coimbra; e, no fundo, ladeado pelo negro esporão do Cabo Mondego, refulgia, ferido pelo Sol, o Oceano.
Por detrás duma dobra do relevo coimbrão sumiam-se as terras ásperas onde fui nado e as mais amenas dos campos do Mondego, onde me criei. A meus pés desdobrava-se o teatro da minha adolescência; do fundo do vale via subir, como uma névoa, os meus primeiros sonhos. Da minha lira, há muito bissexta, ergueu-se um cântico íntimo de saudade. Depois, vibrando como as velhas cordas, baixei por entre adernos, carvalhas, medronheiros, loureiros e giestas gigantescas, restos da primitiva floresta lusitânica, a aspérrima Via-Sacra, que se afunda na selva, acrescida e replantada pelos frades. Ungi-me de novo do velho espírito do Buçaco, cuja mata sagrada celebra e entoa em cada recanto, de frondes, musgo e sombra, a elegia mística da paixão de Cristo.
Mais uma vez compenetrei-me de que é impossível apreender o sentimento essencial desse lugar único em serra portuguesa, sem refluir às suas origens no primeiro quartel do século de Seiscentos. Muitos dos melhores portugueses, ofendidos pelo domínio opressivo dos Filipes, abalavam para o Brasil, alguns para a Índia e a África e muitos para o Peru. Mas outros, como os carmelitas do Buçaco, refugiaram-se naquilo a que chamaram o deserto, o deserto da floresta, cercada e segredada do mundo, com ermidas e rudíssimas vivendas embebidas na rocha; votaram-se à vida solitária e silenciosa do eremitério frondoso; e deram-se por missão plantar árvores, proteger e amar as árvores e renovar a selva primitiva com algumas espécias sagradas como o cedro.

Jaime Cortesão
https://www.youtube.com/watch?v=O6LpPSUjt5I

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