domingo, 14 de janeiro de 2024

São Gonçalo Cagaréu


Aguarda-se em fila a vez para subir ao cimo da capela e lançar as cavacas

Guardo do Largo de São Gonçalinho, a forma tão carinhosa como as gentes da nossa Beira-Mar tratam São Gonçalo, recordações imorredoiras, daquelas que resistem a todos os acidentes de percurso. Morei lá na força da minha vida, com a minha mãe e os meus irmãos, no n.º 1 da Travessa de São Gonçalinho, um primeiro andar que dava, e felizmente ainda dá, para o largo que eu dominava por duas janelas de guilhotina. Lá estudava, noite adentro, lá pintava a roubar ao descanso, de lá partia para o meu trabalho de dia inteiro, e lá ainda descobria horas para dar explicações. 
Todos os moradores do Largo pareciam uma família, sempre com um espírito de entreajuda verdadeiramente excepcional. Era o espírito cagaréu a falar em pleno. Todos os vizinhos, nos dias da festa, colocavam guarda-chuvas abertos do lado de fora das janelas de primeiro andar, logo pela manhã. As minhas janelas eram as que estavam mais a jeito e os meus guarda-chuvas, ao fim do dia, estavam ajoujados de cavacas. À noite, sempre que o sino tocava, lá ia eu ver à janela o espectáculo das pessoas de todas as idades a correr atrás das cavacas que do alto da capela eram atiradas para o terreiro.
A família do lado do meu pai Manuel era toda da Beira Mar. A da minha mãe, da freguesia da Glória. Sou, pois, filho de uma simbiose difícil já que, quando o meu pai, homem da Ria e do Mar, começou a namorar a minha mãe, menina da freguesia “de lá de cima”, como se dizia então, sentiu alguma animosidade pela parte dos mancebos ceboleiros. Nesses tempos que já lá vão, dizem-me que chegava a haver cenas de pancadaria sempre que namoros semelhantes se esboçavam. Esta ambiência única que então se respirava na nossa Beira Mar marcou-me de forma profunda para todo o sempre. 
As pessoas da nossa terra e os seus hábitos mudaram muito. Confesso que tenho saudades do tempo em que se corria toda a Beira Mar sem ver uma única porta fechada à chave, tudo no trinco e fé em Deus, sem um único agente da autoridade a fiscalizar as ruas, porque tal era desnecessário e até insultuoso para os cagaréus.
O tempo passa mas essa fé em São Gonçalo só tem aumentado. Bem escreveu o saudoso poeta aveirense Amadeu de Sousa:

                                                Dos santos todos de Aveiro,

                                                 Desta terra, deste céu,

                                                 S. Gonçalinho é sem dúvida

                                                 O santo mais cagaréu.

São Gonçalo é bem um santo que os aveirenses foram construindo à sua medida, transformando-o em pessoa de família com quem todos se sentem à vontade e a dialogar.
Há quem diga, pela devassa da História, que o Santo nunca terá existido… E até há quem se pergunte se “São Gonçalo não terá sido uma invenção posta ao serviço de uma qualquer ideia ou propósito”. …É com estas palavras que o padre Amaro Gonçalves se questiona sobre o assunto.. Mas facto é que existe um testamento de uma tal Maria Johannis, datado de 18 de Maio de 1279, legando os seus bens à Igreja de São Gonçalo de Amarante. Supõe-se que o santo terá morrido a 10 de Janeiro de 1259, portanto vinte anos antes desse legado à Igreja de seu nome. Segundo o Flos Sanctorum de 1513, Gundisalvus, ou Gonçalo, “nasceu em Tagilde, estudou rudimentos com um devoto sacerdote e frequentou depois a escola arqui-episcopal de Braga. Ordenado sacerdote foi nomeado pároco de São Paio de Vizela. Depois foi a Roma e Jerusalém; no seu regresso, vendo-se desapossado do seu benefício, prosseguiu um caminho de busca interior já anteriormente encetado; depois foi a experiência da vida eremítica, a pregação popular…, e logo caiu na ambiência mendicante da época, após o que se faria dominicano”.
No dia 10 de Janeiro, entre os anos de 1682 e 1687, o nosso grande jesuíta Padre António Vieira, na cidade brasileira de Bahía, proferiu um brilhante sermão, belíssimo panegírico seiscentista, de recorte barroco, ao nosso São Gonçalo. O brilhante orador, sempre agarrado à sua fluência expositiva, refere alguns dos milagres do Santo. O do pão que faz converter em carvão e voltar à alvura primitiva. O do amansar de uns touros bravos, como se tivessem ensino de muitos anos. O dos cardumes de peixe que saltavam aos pés do santo consoante sua ordem. O da água e do vinho que brotavam de fontes que ele fez surgir nas pedras da ponte amarantina em construção, para apagar a sede dos trabalhadores e lhes dar alegria na sua lide. E de tantos, tantos outros que mantêm incólume., ainda hoje, a sua fama de santo milagreiro.
Desses milagres eu já tinha notícia, por leituras, quando vivi na Travessa de São Gonçalinho.
Mas do seu espírito vingativo, foi lá que, à boca pequena, fui sabendo de algumas histórias de castigos dados pelo Santo a quem se atrevesse a desfeiteá-lo.
Como a queda do Cajica quando estava empoleirado num escadote a pintar a capela e que, chegado ao pé da imagem, lhe pôs uma “purisca” nos lábios, invectivando-o:”Tu não fumas estipor?”.
Ou a cena do Mestre Zé que se viu aflito a sair a Barra de Aveiro com a sua embarcação, só por se ter recusado a dar esmola ao Santo.
Ou ainda o roubo do relógio do Luís Pierres, em pleno arraial, por igual recusa de esmola. E muitas mais. 
Mas nunca consegui, nos anos sessenta, ao contrário do que hoje acontece, ter uma descrição cuidada da célebre “dança dos mancos” que se fazia, que se fez sempre, no maior dos segredos, pela noite dentro, na capela de portas trancadas. Pessoas que eu sabia serem mordomos da festa e, portanto, zeladores da capela, nela pernoitando para, afirmavam, tomar conta das pratas que eram emprestadas para decorar os altares, indagados sobre a “dança”, não tugiam nem mugiam. Uma vez pus o problema ao senhor Prior que me disse que “isso” tinha sido proibido pelo senhor Bispo, para garantir o decoro na capela. Mas que o espírito brejeiro das gentes da Beira Mar nunca deixou morrer a “dança dos mancos”, com proibição ou sem proibição, isso para mim, hoje, não me deixa dúvidas.
Nunca assisti a uma dessas danças dentro da capela. Mas já assisti a réplicas executadas por ex-mordomos e, efectivamente, vê-los a dançar com as suas macaquices e ouvi-los cantar as suas versalhadas marotas é de morrer a rir.
Aliás, esta associação de São Gonçalo a estas danças não é só verificável em Aveiro. Com a mesma natureza brejeira, as danças e bailes de São Gonçalo aparecem sempre por toda a parte onde há festejos em sua honra.
O que é certo é que da fama de folião e casamenteiro o Santo se não livra nos dois lados do Atlântico.
Num lado e noutro, São Gonçalo é especialista em casar solteironas:

                                               São Gonçalo d’Amarante,

                                                Casamenteiro das velhas;

                                                Por que não casas as novas,

                                                Que mal te fizeram elas?

Num lado e noutro, São Gonçalo aparece-nos associado a uma saudável folia…
Eu disse que os tempos mudaram muito a minha Beira Mar, desde que eu a comecei a conhecer. Sem dúvida que sim. Então, a economia do Bairro assentava na pesca do mar e do rio; no amanho das marinhas de sal; na apanha do moliço que continuava a converter as areias estéreis em úberes terras de pão; em alguma construção naval; no tráfego dos mercantéis que transportavam materiais de construção e alimentos para todas as motas da Ria onde as populações se ancoravam em pequenos povoados. E para todas estas actividades o povo cagaréu solicitava a protecção do nosso Santo. São Gonçalinho até foi nome de arrastão do bacalhau, levando a fé que nele depositavam os armadores e os pescadores da nossa praça até aos mares da Terra Nova, da Gronelândia, da Noruega...
Hoje, as pessoas da Beira Mar já não assentam as suas vidas nesse tipo de actividades, por sua natureza tão aleatórias. Mas a verdade é que o Bairro continua a ter características únicas que lhe conferem uma identidade inconfundível. E tudo continuando à volta do Santo Cagaréu. 
É certo que já não posso ir à casa dos meus avós paternos comer da bacia a caldeirada que o meu avô Ti Luís Manco cozinhava em banho-maria na panela de três pés, no borralho da lareira da cozinha de terra batida, coberta de junco.
É certo tudo isso…
 Mas também é verdade que os festejos de São Gonçalinho se continuam a fazer todos os anos. Que as cavacas atiradas da Capela são objecto de reportagens fotográficas e televisivas. Que a Confraria de São Gonçalo, arregimentada pelo Confrade-Mor Carlos Souto, continua a manter acesa a chama de um saudável aveirismo que Eduardo Cerqueira pregou e que Amadeu de Sousa cantou nos seu versos, defendendo as nossas tradições, sempre assentes na nossa tradicional tolerância e no mais escrupuloso respeito pela liberdade.

Cheira-me, depois disto tudo, que o maior milagre que o nosso São Gonçalinho de Aveiro nos fez foi o de ter eliminado as pontes que, tempos idos, separavam os ceboleiros dos cagaréus, permitindo que, com as nossas diferenças, saibamos fazer maior o amor que todos sentimos por esta terra que nos viu nascer ou quisemos fazer nossa.

 Gaspar Albino (texto com supressões), 25 de Novembro de 2006

https://www.youtube.com/watch?v=hbrU28gX2oQ


 

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