sábado, 24 de outubro de 2015

As maçãs de Cézanne


Um artista é um mestre do olhar. Gosto de pensar assim em Cézanne. Ele viveu narrando a apaixonada visualidade do mundo, mas mantendo-se à procura (em cada paisagem ou figura, em cada maçã) de alguma coisa que nunca se toca completamente. "O que eu procuro traduzir é mais misterioso, enxerta-se na própria raiz do ser, na fonte inapreensível das sensações" - explicava-se assim. Pintava sempre os mesmos objetos, e pintava-os por eles mesmos, pela sua ressonância espiritual. Tinha por técnica a sobreposição de cores sucessivas, que não se misturavam. Para obter esse efeito, precisava esperar que a primeira tinta secasse, para introduzir então a seguinte: um processo extraordinariamente lento, rigoroso e, claro, contemplativo. Concentrava-se na cor, sintetizava nela a experiência de revelação e a tomada de consciência das coisas. "A montanha pensa em mim, e eu torno-me a sua consciência" era um dos seus lemas. Por isso aquele que disse que "suspensas entre a natureza e a utilidade, as maçãs de Cézanne existem apenas para serem contempladas", não se enganou. Estas maçãs que podiam simplesmente estar sobre a nossa mesa são uma espécie de exercício proposto ao olhar. Essas pequenas esferas, leves e maciças, desenhadas nas frestas invisíveis da luz, iluminam o nosso  modo instável de segurar o escuro.

José Tolentino Mendonça
https://www.youtube.com/watch?v=D25zQsfNPYY

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