domingo, 30 de julho de 2017

Mar


O verão já vai alto e eu ainda não dei um mergulho.
O estio é época de dura faina para quem vive do palco e o meu síndroma-de-sereia-seca está taco a taco com um valente défice de vitamina D.
Preciso de água como as plantas, só que salgada. Quando passo perto do mar o vejo a entrar pela janela do carro, sinto uma espécie de sede, que não é de beber, mas de mergulhar. Todos os anos se repete a privação e todos os anos prometo a mim mesma um (utópico) verão na areia, só para ver se é possível fartar-me dele, e não fazer mais nada que não ler, dormir e flutuar.
Flutuar é aliás um dos prazeres da vida mais menosprezados e uma das artes mais intuitivas (porém delicadas) que podemos praticar. Para mim sempre foi fácil. É só estender o corpo na água como uma cama infinita, e senti-lo derreter para depois levitar, numa espécie de lençol fluído que nos embala docemente. Deve ser o mais perto de estar numa placenta, mas com todo um céu para contemplar. E em vez de ouvirmos um coração de mãe, ouvimos a conversa dos búzios, ou o nosso próprio murmurar, que a água nos devolve com uma canção de ninar engarrafada.
Sempre vivi perto do mar. Cresci a 500 metros do Atlântico, onde também cresceu António Nobre. Da janela virada para o porto de Leixões, gostava de ver a ponte móvel e a entrada dos navios, com o seu uivo, sempre grave. De ver o rebuliço dos guindastes, descarregando troncos, carros, cereais. De ver as gaivotas invadir o recreio da escola em dia de tempestade. De voltar da praia sem sandálias. De mexer no sargaço regurgitado pelas ondas. De ver o brilho madrepérola dos grãos de areia incrustados na pele, como pedras preciosas em marfim. E de sentir o cheiro do mar permanentemente. Como uma confirmação de proximidade. Sobretudo no inverno, quando está tão bravo que cospe tudo o que não quer e a nortada nos fere os tímpanos com suas agulhas.
Acho que uma boa parte da minha identidade portuguesa está depositada nessa dependência. Nessa certeza de que viver sem mar é como morar numa casa sem janelas.

Capicua
(pintura de Alfredo Roque Gameiro)
https://www.youtube.com/watch?v=FOCucJw7iT8&t=592s

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