sexta-feira, 15 de julho de 2011

O desperdício


É preciso não esquecer que a literatura, como a vida, é feita com uma grande margem de desperdício e isso não é mau. Imaginem o que seria se o mundo fosse feito de génios, obcecados com as suas obras-primas com que iriam brindar a sociedade! Que vida chata a gente teria! Eu, de escritores antigos, só me lembro de ter tido verdadeiro prazer a ler o Fernão Mendes Pinto. Toda a complexidade da condição humana, aquele deslumbramento pelo diferente, que normalmente nos aterroriza, tem na sua escrita qualquer coisa de exemplar que me leva, não sei se abusivamente, a atribuir ao português ou pelo menos ao português pobre, esta facilidade de se fascinar com o outro. Mesmo nas colónias não tivemos colonizadores. Tivemos imigrantes. Gostaria de reflectir um dia sobre esse fenómeno bem português de sairmos daqui por causa da pobreza. Tal qual os imigrantes que conheci. Creio mesmo que o próprio racismo é cultural mas isso fica para depois. É isso: temos que contar com o desperdício e creio que uma parte da beleza da vida é feita por essas manifestações de "desperdício" que nos trazem muitas horas boas. De resto, o "desperdício" é essencial à manutenção do sistema. Já tenho contado a história das formigas: não sei se sabem que, num formigueiro. oito de cada dez formigas não fazem nada, só atrapalham. No entanto, são elas que asseguram a sobrevivência do sistema. Se todas tivessem uma função, a gente pisava um formigueiro e o sistema entrava imediatamente em ruptura(...)
As sociedades que estamos a construir, com esta necessidade essencial de termos uma função dentro delas, enfiam-nos numa comunidade chata e invisível e é isso que dá lugar às grandes exclusões sociais. Quem está integrado no sistema se, por azares da vida sai dele, dificilmente terá possibilidades de reintegração. Temos que prever o ócio, que é uma forma de desperdício, se queremos sobreviver como espécie. Quando vou a África, ao lado daquelas guerras todas em que os meteram aqueles organizaram assim o mundo, fico encantado com aquela capacidade de preguiça ostensiva. Dá-me uma sensação de bem-estar que não encontro por essa Europa fora onde as pessoas já trazem na cara a ansiedade e a angústia de quem não pode parar.

António Alçada Baptista
http://www.youtube.com/watch?v=Gm9T5EQOxDE&feature=relmfu

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