domingo, 15 de janeiro de 2012

Vitória


-Vitória!...Vitória!...
Na minha frente resplendia o espectáculo magnífico do Porco, transformado pela indústria do homem em pequenas obras-primas para o gosto e para os olhos, com cambiantes de cor que iam do  loiro das alheiras de Bragança às cacholeiras de Elvas, negras como a tinta dos chocos, passando pelas morcelas, em gancho, da Guarda. Sobre um chão de presuntos de Chaves, a que o colorau emprestava o tom ferrugento da areia, erguia-se um palanque de farinheiras em festa, à sombra das quais se repimpavam os paios de lombo, de coletes desabotoados, enquanto lá de cima, das prateleiras de vidro, pendiam linguiças como cabelos gordos duma bruxa ruiva e, aqui e ali, tal salpicadelas dum pincel de artista comilão, se reuniam em piquenique os salpicões de Portalegre, as placas de toucinho fumado com veios de pedra polida, as mortadelas, os painhos avinhados, os chouriços de sangue, os torresmos de Montijo, os rojões de Mirandela...
Era a apoteose ao Porco em toda a pujança duma  indigestão fabulosa numa barriga transparente!
Confesso que me apeteceu, pelo menos, arrotar de aplauso.
Em vez disso, porém - caminhos complicados os do homem! -, aquela paisagem grosseira inventou-me uma melodia delicada e espiritual de violino longo. E tive saudades.
Sim. Tive saudades absurdas da paz autêntica que nunca gozei, eu que pertenço a uma geração que já gramou - repito: que positivamente já gramou! - duas guerras universais com as respectivas consequências do ódio estrangulador de todas as pombas.
Senti saudades, não do passado, mas dum futuro qualquer, tão distante, tão lá no fundo, tão sonho, tecido apenas de pequenas coisas doces, num mundo menos pesado de cadáveres, desdenhosos de outro heroísmo que não fosse o de vivermos a teima dos dias persistentes e, sobretudo, alheio à horrível morte colectiva a substituir a boa, a individual, a sagrada morte de cada um.
-Vitória!...Vitória!...
...Assim cogitei toda a tarde, no oitavo dia do mês de Maio de mil novecentos e quarenta e cinco, data em que findou a segunda grande guerra mundial no meio de vivas e de bandeiras de triunfo, e em que tentei, em vão, resignar-me ao mundo dos ouros e às montras de enchidos de porco - sem estrelas reflectidas nos vidros.

José Gomes Ferreira
http://www.youtube.com/watch?v=uB14U2zNRjs

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