domingo, 29 de janeiro de 2017
Dies Irae
Apetece cantar, mas ninguém canta.
Apetece chorar, mas ninguém chora.
Um fantasma levanta
A mão do medo sobre a nossa hora.
Apetece gritar, mas ninguém grita.
Apetece fugir, mas ninguém foge.
Um fantasma limita
Todo o futuro a este dia de hoje.
Apetece morrer, mas ninguém morre.
Apetece matar, mas ninguém mata.
Um fantasma percorre
Os motins onde a alma se arrebata.
Oh! maldição do tempo em que vivemos,
Sepultura de grades cinzeladas,
Que deixam ver a vida que não temos
E as angústias paradas!
Miguel Torga
(pintura de Eduard Munch)
https://www.youtube.com/watch?v=YH2m7eQOunE
sábado, 21 de janeiro de 2017
Esboço de natureza-morta por J. Gris
deve ser recriado pelo olhar
lentamente
cubro a tela com manchas cinzentas
sépias tímidas claridades arestas de sombra
brancos-de-zurbarán irradiando místicas visões
organizada a obra atribuo nomes
papel garrafa tigela ovos prato toalha
ou talvez ainda outros nomes
outras coisas ainda inexistentes
porque a essência do fascinante trabalho
está no pulsar de certas íntimas relações
entre o meu corpo e o mundo que lhe é exterior
não admira que de algumas manchas de cor
sem jeito aparente se arrume com rigor
a natureza-morta
mas o que me perturba é não saber ainda
se uma ave surpreenderá o falso sossego
destas formas bicudas a que chamei ovos e
me fizeram esquecer aqueles que em criança
roubava ao primaveril calor dos ninhos
Al Berto
(pintura de Juan Gris)
https://www.youtube.com/watch?v=MHV6VqsNT3Q
domingo, 8 de janeiro de 2017
Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.
Fernando Pessoa
(arte de Lourdes Castro)
domingo, 1 de janeiro de 2017
Folhinha
Assim tinha de ser, neste renovo
Quotidiano,
Outro ano,
Outra flor,
Outro perfume.
O gume
Do cansaço
Vai ceifando,
E o braço
Doutro sonho
Semeando.
É essa a eternidade:
A permanente rendição da vida.
Outro ano,
Outra flor,
Outro perfume,
E o lume
De não sei que ilusão a arder no cume
De não sei que expressão nunca atingida.
Miguel Torga
https://www.youtube.com/watch?v=uRTW7tl0pew
domingo, 18 de dezembro de 2016
Natal
É um impulso divino que irrompe pelo interior da história
Uma expectativa de semente lançada
Um alvoroço que nos acorda
para a dicção surpreendente que Deus faz
da nossa humanidade
O Natal não é ornamento: é fermento
Dentro de nós recria, amplia, expande
O Natal não se confunde com o tráfico sonolento dos símbolos
nem se deixa aprisionar ao consumismo sonoro de ocasião
A simplicidade que nos propõe
não é o simplismo ágil das frases-feitas
Os gestos que melhor o desenham
não são os da coreografia previsível das convenções
O Natal não é ornamento: é movimento
Teremos sempre de caminhar para o encontrar!
Entre a noite e o dia
Entre a tarefa e o dom
Entre o nosso conhecimento e o nosso desejo
Entre a palavra e o silêncio que buscamos
Uma estrela nos guiará
O Natal não é ornamento"
Uma expectativa de semente lançada
Um alvoroço que nos acorda
para a dicção surpreendente que Deus faz
da nossa humanidade
O Natal não é ornamento: é fermento
Dentro de nós recria, amplia, expande
O Natal não se confunde com o tráfico sonolento dos símbolos
nem se deixa aprisionar ao consumismo sonoro de ocasião
A simplicidade que nos propõe
não é o simplismo ágil das frases-feitas
Os gestos que melhor o desenham
não são os da coreografia previsível das convenções
O Natal não é ornamento: é movimento
Teremos sempre de caminhar para o encontrar!
Entre a noite e o dia
Entre a tarefa e o dom
Entre o nosso conhecimento e o nosso desejo
Entre a palavra e o silêncio que buscamos
Uma estrela nos guiará
O Natal não é ornamento"
domingo, 11 de dezembro de 2016
A uns anos
Mas dura uma eternidade
Passada na ansiedade,
Passada no dissabor.
Quando a fortuna bafeja
O frágil baixel da vida,
Nunca parece comprida,
Por mais comprida que seja.
Ora tendo vós a sorte
De ver hoje a vosso lado
O vosso filho adorado,
Vossa adorada consorte,
A natural alegria
Vos faz cair num engano;
Vós não fazeis mais um ano... -
Fazeis mas é - mais um dia.
João de Deus
(caricatura de Rafael Bordalo Pinheiro)
https://www.youtube.com/watch?v=Q0HDwGaU_24
sábado, 3 de dezembro de 2016
Para o meu velho Layton
Ele oculta a sua dor sem dono
em frases de amor
da mesma maneira que um gato esconde as fezes
debaixo das pedras e aparece durante o dia,
arrogante, limpo, rápido, disposto
a caçar ou dormir ou a perecer de fome.
...
A cidade recebe-o com lixo
que ele interpreta como um elogio
à sua musculatura. Cascas de laranja,
latas, tripas chovendo como papel de teletipo.
Durante algum tempo ele destruiu as suas noites
com a sua sombra refletida na janela da lua cheia
enquanto espiava a paz da gente vulgar.
...
Uma vez invejou-os. Agora com um feliz
uivo saltava de monumento em monumento,
penetrava nos seus lugares mais sagrados, ébrio
de saber quão perto vivia dos mortos
debaixo da terra, ébrio de sentir o muito que queria
aos seus irmãos que ressonavam, os velhos e as crianças da cidade.
Leonard Cohen
trad. de Vasco Gato
(auto-retrato de Leonard Cohen)
https://www.youtube.com/watch?v=v0nmHymgM7Y
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