domingo, 2 de julho de 2017

Os dois irmãos


                       Eu conheço dois meninos
                       que em tudo são diferentes.
                       Se um diz: “Dói-me o nariz!”
                       o outro diz: “Ai, meus dentes!”

                       Se um quer brincar em casa,
                       o outro foge para o monte;
                       e se este a casa regressa,
                       já o outro foi para a fonte.

                       É difícil conviver
                       com tanta contradição.
                       Quando um diz: “Oh, que calor! “,
                       “Que frio!” – diz o irmão.

                       Mas quando a noitinha chega
                       com suas doces passadas,
                       pedem à mãe que lhes conte
                       histórias de Bruxas e Fadas.

                       E quando o sono esvoaça
                       por sobre o dia acabado,
                       dizem “Boa noite, mãe!”
                       e adormecem lado a lado.

                       Maria Alberta Menéres
                       (pintura de Portinari)
                       https://www.youtube.com/watch?v=zhLPzsD_c5o


domingo, 25 de junho de 2017

As mãos

                     

                        Sabias que as mãos envelhecem mais depressa? Elas
                        estiveram sempre perto do tempo, nunca se cansaram
                        de receber a poeira dos campos, a areia numa praia, o ar
                        que vinha da nossa respiração. Ao folhearem um livro
                        colhiam as palavras. Por vezes aproximam-se
                        para encontrar o peso das coisas e as conhecer
                        melhor. Junto das árvores sentem a resina, talvez
                        a luminosidade que existe no seu interior. Se acenam
                        a alguém ficam depois mais unidas. É assim que o seu calor
                        nos pertence. Depois podes esperar que principie um gesto
                        que seja de todos o mais simples. Será o último? Olha-as
                        de novo, para que elas possam também descansar.

                        Fernando Guimarães
                        (arte de Helena Almeida)
                        https://www.youtube.com/watch?v=JnmbN3Yitcs

domingo, 18 de junho de 2017

As florestas são do outro mundo


Sempre pensei em florestas como se elas fossem
seres sobrenaturais, na extensão das reservas de oxigénio
e gargalhadas minúsculas, de luzes e trovões,
no seu peso de mistérios voadores
e de fadas,
nas cupuladas abóbadas vegetais
onde guinchavam os bichos.

Floresta era para mim uma pedagogia orgânica,
sagrada, herdada de magos
e feiticeiras da escrita,
negra ou imersa no verde absoluto,
germânica ou imensamente amazónica
por anacronia.

No campo onde eu cresci o campo foi sempre um campo
meio aberto ao vento e à falta de memória.
As altas estacas pernaltíssimas, esse pinheiro bravo,
desengonçado e tão pobre de copas e pinhões,
deixavam-no esquecido a medrar gerações
atrás de gerações.

Por que não, por fim, essa floresta?
Irei talvez voltar a chorar vegetalmente,
resignar-me-ei à resina do pinho
coalhada nos meus olhos, e entre sombras de sonhos inverosímeis,
acariciarei algum anão matreiro
oculto na floresta mansa dos pinheiros bravios,
e respirarei o cheiro do eucalipto astuto
para me alisar os nervos encrespados
pela inquietação do mar.

Armando Silva Carvalho
(pintura de Pedro Cabrita Reis)
https://www.youtube.com/watch?v=sgNeH9_8l0w

domingo, 11 de junho de 2017

É preciso um país

               

                 Não mais Alcácer Quibir.
                 É preciso voltar a ter uma raiz
                 um chão para lavrar
                 um chão para florir.
                 É preciso um país.

                 Não mais navios a partir
                 para o país da ausência.
                 É preciso voltar ao ponto de partida
                 é preciso ficar e descobrir
                 a pátria onde foi traída
                 não só a independência
                 mas a vida.

                 Manuel Alegre
                 (pintura de Graça de Morais)
                 https://www.youtube.com/watch?v=ubz94c4SyJU

domingo, 4 de junho de 2017

A dama pé de cabra


D. Diogo Lopes era um infatigável monteiro: neves da serra no Inverno, sóis estivais no Verão, noites e madrugadas, disso se ria ele.
Pela manhã cedo de um dia sereno, estava D. Diogo em monte selvoso e agreste, esperando um porco montês, que, batido pelos caçadores, devia sair naquela assomada.
Eis senão quando começa a ouvir cantar ao longe: era um lindo, lindo cantar.
Alevantou os olhos para uma penha que lhe ficava fronteira: sobre ela estava assentada uma formosa dama:era a dama quem cantava.
- Quem sois vós, senhora tão gentil; quem sóis, que logo me cativastes?
- Sou de tão alta linhagem como tu; porque venho do semel de reis, como tu, senhor de Biscaia.
- Se já sabeis quem eu seja, ofereço-vos a minha mão, e com ela as minhas terras e vassalos.
- Pois sabe que para eu ser tua é preciso esqueceres-te de uma cousa que a boa rica-dona te ensinava em pequenino e que, estando para morrer, ainda te recordava.
- De quê, de quê, donzela? - acudiu o cavaleiro com os olhos chamejantes - De nunca dar tréguas à mourisma, nem perdoar aos cães de Mafamede? Sou bom cristão. Guai de ti e de mim, se és dessa raça danada!
- Não é isso, dom cavaleiro - interrompeu a donzela a rir. - O de que eu quero que te esqueças é do sinal-da-cruz: o que eu quero que me prometas é que nunca mais hás-de persignar-te.
- Seja assim: está dito. Vá com seiscentos diabos.
Só quando, à noite, no seu castelo, pôde considerar miudamente as formas nuas da airosa senhora, notou que tinha os pés forcados como os de cabra.

Alexandre Herculano
(pintura de Paula Rego)
https://www.youtube.com/watch?v=BUefckcQwMo


segunda-feira, 29 de maio de 2017

No fundo do mar





No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.

Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.

Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.

Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso.


Sophia de Mello Breyner Andresen
(ilustração de Fernanda Fragateiro)
https://www.youtube.com/watch?v=stcQlmM941k

domingo, 21 de maio de 2017

O livro



Entrei numa livraria. Pus-me a contar os livros que há para ler e os anos que terei de vida. Não chegam, não duro nem para metade da livraria.
Deve certamente haver outras maneiras de se salvar uma pessoa, senão estou perdido.
No entanto, as pessoas que entravam na livraria estavam todas muito bem vestidas de quem precisa salvar-se.

Comprei um livro de filosofia. Filosofia é a ciência que trata da vida; era justamente do que eu necessitava - pôr ciência na minha vida.
Li o livro de filosofia, não ganhei nada, Mãe! não ganhei nada. 
Disseram-me que era necessário estar já iniciado, ora eu só tenho uma iniciação, é esta de ter sido posto neste mundo à imagem e semelhança de Deus. Não basta?

Imaginava eu que havia tratados da vida das pessoas, como há tratados da vida das plantas, com tudo tão bem explicado, assim parecido com o tratamento que há para os animais domésticos, não é? Como os cavalos tão bem feitos que há!
Imaginava eu que havia um livro para as pessoas, como há hóstias para cuidar da febre. Um livro com tanta certeza como uma hóstia. Um livro pequenino, com duas páginas, como uma hóstia. Um livro que dissesse tudo, claro e depressa, como um cartaz, com a morada e o dia.

Eu queria que os outros dissessem de mim: Olha um homem! Como se diz: Olha um cão! quando passa um cão; como se diz: Olha uma árvore! quando há uma árvore. Assim, inteiro; sem adjectivos, só de uma peça: Um homem!

Almada Negreiros (texto e pintura)
https://www.youtube.com/watch?v=puPdW38FH_4