domingo, 23 de dezembro de 2018

Natividade

                     

                              Brilhai lua de oiro
                       nasceu o menino.
                       Brilhai até que traga a madrugada 
                       sua luz de copo azul,
                       manhã de frio cristal.

                       Os anjos suspendem o canto
                       voam pelo rombo da telha alta da
                       fábrica.
                       Já entram os primeiros pastores.
                       No fogareiro de barro

                       São José aquece a faixa
                       que vai sentir o indefeso menino.
                       A cesta dos ovos é o presente
                       perfeito
                       desenhado pelas aves.

                       Brilhai luz do meio-dia
                       como se descessem de deus
                       raios azuis de incenso.

                       João Miguel Fernandes Jorge
                       ( retábulo do Paraíso, atrib. a Gregório Lopes)
                       https://www.youtube.com/watch?v=8j6MAFUoOTg        

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Tartaruguinhas


Ira sempre esperou o dia em que as tartarugas-rosa vinham do mar. Quando o calor subia, tudo ficava de olho, à coca, predadores alados, marinhos, humanos, na expectativa dos ovos. Então o dia chegava e elas emergiam das águas aos milhares, gigantes de meia tonelada, dois metros de comprimento, trepavam pela areia com as suas patas nadadeiras, as suas cabeças de milhões de anos, cada uma escolhia um lugar para escavar o buraco, enterrava dezenas e dezenas de ovos, cobria-os e voltava ao mar.
A primeira vez que viu isto, Ira perguntou à avó se eram todas mães, ou os pais também tinham ovos. A avó disse que não, que os pais tartaruga nadam pelos oceanos toda a vida, que é lá que põem a sua semente nas mães, e nunca voltam a pisar a praia onde nasceram. Mas daí a lua-e-meia, explicou, ele poderia ver os bebés tartaruga, machos e fêmeas. Ira fez as contas e começou a ir à praia. Até que certa noite aconteceu, milhares de bebés cor-de-rosa começaram a brotar dos buracos, sacudindo a areia, e imediatamente, freneticamente correram na direcção da água. O luar iluminava aquela maratona épica, aqueles metros em que tudo rivalizava para lhes roubar a vida. Ira só pensava que tinham nascido há segundos, sozinhos no mundo, sem pai nem mãe, e sabiam para onde ir, o que fazer. Que segredo era esse com que já nasciam?
Anos depois, na cidade aprendeu que só sobrevive um em cada cem bebés-tartaruga. Quando chegam a adultos, fecundam com outros uma mesma fêmea, que no grande calor voltará a Alendabar para enterrar os seus ovos, recomeçando tudo. E se a temperatura da areia for acima de trinta graus, o ovo será fêmea.

Alexandra Lucas Coelho
https://www.youtube.com/watch?v=1oiximotlME

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Homero

                            

                  Escrever o poema como um boi lavra o campo
                  Sem que tropece no metro o pensamento
                  Sem que nada seja reduzido ou exilado
                  Sem que nada separe o homem do vivido

                  Sophia de Mello Breyner Andresen
                  (pintura de Miró)
                  https://www.youtube.com/watch?v=55yJJiwrmAw

domingo, 25 de novembro de 2018

Testamento de Vieira da Silva


Eu lego aos meus amigos

Um azul cerúleo para voar alto.
Um azul cobalto para a felicidade.
Um azul ultramarino para estimular o espírito.
Um vermelhão para o sangue circular alegremente.
Um verde musgo para apaziguar os nervos.
Um amarelo ouro: riqueza.
Um violeta cobalto para o sonho.
Um garança para deixar ouvir o violoncelo.
Um amarelo barife: ficção científica e brilho; resplendor.
Um ocre amarelo para aceitar a terra.
Um verde veronese para a memória da primavera.
Um anil para poder afinar o espírito com a tempestade.
Um laranja para exercitar a visão de um limoeiro ao longe.
Um amarelo limão para o encanto.
Um branco puro: pureza.
Terra de Siena natural: a transmutação do ouro.
Um preto sumptuoso para ver Ticiano.
Um terra de sombra natural para aceitar melhor a melancolia negra.
Um terra de Siena queimada para o sentimento de duração.

   
                           Maria Helena Vieira da Silva 
                        (Arpad Szenes - retrato)
                        https://www.youtube.com/watch?v=pzmpiL1R9YM

sábado, 17 de novembro de 2018

Prenda para os teus 7 anos


A belharara é uma espécie muito rara
B aleipato passeia feliz com o seu fato
C abralesma faz o pino e está na mesma 
D ragãochita agarra o balão com a guita
E matigre canta e escreve sempre alegre
F ocalince brinca e ri com tanta tolice 
G irafante dança o tango sempre elegante
H ienarã liga à irmã logo de manhã
I guanimpala traz um boné com pala
J oanigata nunca se cala e pouco se rala
K oalarrato lança ao ar o seu sapato
L eopardal cozinha tudo com muito sal
M acacobra come imenso e nada sobra
N ialacamelo gosta de limonada com gelo
O kapintarroxo entra aos saltos e é coxo
P ulgafalhoto anda com o colete num oito
Q uiparapandu não é nada inventei tudo
R inoceboi picou-se na patinha e dói
S apopanda traz o chapéu meio à banda
T artaruburra cai na neve e não se esmurra
U rsorrola voa dentro de uma passarola
V eadocorvo passa sem causar estorvo
W hale diz-se assim baleia em inglês
X ipaletónico podia ser um animal supersónico.
Y atulmerido também não existe e é querido
Z ebraranhão adora andar no seu avião.

HN, 14 Nov. 2018 
(arte de Celeste Capitão)


domingo, 11 de novembro de 2018

Imaginação


Entrei no café com um rio na algibeira
e pu-lo no chão,
a vê-lo correr
da imaginação...

A seguir, tirei do bolso do colete
nuvens e estrelas
e estendi um tapete
de flores
a concebê-las.

Depois, encostado à mesa,
tirei da boca um pássaro a cantar
e enfeitei com ele a Natureza
das árvores em torno
a cheirarem ao luar
que eu imagino.

E agora aqui estou a ouvir
A melodia sem contorno
Deste acaso de existir
-onde só procuro a Beleza
para me iludir
dum destino.


José Gomes Ferreira
(arte de Beatriz Bagulho)
https://www.youtube.com/watch?v=Hch9bWQ3hhk

domingo, 4 de novembro de 2018

Railroad Sunset


A casa do agulheiro abandonada
e o alpendre da sinalização.
Por detrás de cretones e flores
secavam as malgas de marmelada.
O mar dos comboios já não pára aqui
O cartaxo de cabeça preta
canta nos fios telegráficos
entre taludes e cascalho.
A desolação do crescimento faz comércio
noutros lugares.
Nos baldios crepúsculos vermelhos
por charnecas que voltam a ser verdes
regressam as inseguras coisas naturais.

Joaquim Manuel Magalhães
(pintura de Edward Hopper)
https://www.youtube.com/watch?v=K-CvKEwjxBU