sábado, 14 de novembro de 2020

Aniversários

 


As abelhas não fazem anos.
Nenhuma viveu um ano
para o poder fazer.

Com um dia de vida
qualquer abelha vai trabalhar.
Com dois já pode namorar
e com cinco casa e tem filhos.
Com vinte dias de vida
uma abelha está acabada:
é uma velha.

Os anões são tão pequeninos
que não fazem anos.
Fazem aninhos.
Os gigantes são tão grandalhões
que não fazem anos.
Fazem anões.

Os anos que fazemos
também nos fazem a nós.
Os anos que fizemos nos fizeram.
Os anos que faremos nos farão.
É de anos que somos feitos,
de breve e misterioso tempo.
Em nós estão os anos que já fomos.
Esses anos, que fizemos, somos nós,
do cimo da cabeça à ponta dos pés.

Álvaro Magalhães

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Escrever poemas



Escrever poemas é bom, pode ser. Comecei a escrever poemas aos 10, 11 anos. Voltava da escola no segundo andar do autocarro da Carris e apetecia-me escrever sobre o que via. Os sinais de trânsito eram chupa-chupas, os semáforos tinham cores de rebuçado. Nunca gostei de chupa-chupas nem de rebuçados mas achava que ficava bonito numa redacção escolar escrever estas coisas. Dava-me prazer escrever assim e achava que estava certo o que escrevia. As professoras gostavam muito das minhas redacções, tinha muito sucesso.
Comecei a ouvir a Musa quando ia fazer 23 anos. Antes não ouvia a Musa. Eu sei que falar assim parece banha de cobra. Mas não é. Já contei isto muitas vezes. A minha gata tinha desaparecido, eu estava muito triste, aflita. De repente na minha cabeça estava um poema sobre a gata. Peguei na caneta e na esferográfica e escrevi. Ouvir a Musa não é só ter prazer em escrever, ter ideias ou imagens como eu tinha aos 11 anos. É aparecer o texto na cabeça vindo não sei de onde. E a minha gata apareceu. Não são os textos que me interessam, quero lá saber da Musa. Quero é a gata, o afecto, a vida, a gata.
Ouvir a Musa é desgastante, um frenesi. Volto a escrever como aos 11 anos, quando andava no segundo andar do autocarro da Carris. Tenho 60 anos adolescentes.
                                                                                  7-VI-2020

Adília Lopes
Pintura de Pierre-Auguste Renoir

 

 




sábado, 31 de outubro de 2020

Os números


este é o livro da minha descendência:
adelino gerou armindo que gerou adão que 
gerou tiago que gerou três. dois deles correm agora pela sala em
perseguições alternadas. o terceiro cresce sem que o 
vejamos ainda. somos cada vez mais, embora insuficientes
para substituir os mortos que coleccionamos em álbuns de 
família, e por motivos práticos vivemos quase isolados na nossa
felicidade doméstica, um sentimento mal recebido pela crítica.
durante a infância ninguém morreu. os corpos 
eram retirados do olhar das crianças de forma subtil e
eficaz. chegou por fim o momento de consultar
a conta-corrente, de avaliar os ganhos e as perdas.
um nome por cada nome, numa família em que o
passou é quase tão desconhecido como o futuro.
fomos trazidos até aqui por uma paixão
quase constante entre os sexos, ao longo dos séculos.
e agora, na idade adulta,é a cada dia
que nos vamos aproximando do passado.
pode ter sido muito diferente em outras épocas, mas
hoje é saturno que é devorado pelos filhos enquanto vê
televisão, numa tarde de sábado.

Tiago Araújo

sábado, 17 de outubro de 2020

Redacção da Guidinha


Ora cá estou eu

Ora cá estou eu Guidinha em tudo menos nos papéis porque nos papéis sou Margarida do Rosário Peixoto para falar dos homens pais que são os homens piores que eu conheço são tão ruins que eu tenho pena de ter Mãe e Pai antes queria ter duas Mães eles são tão ruins que até fingem que a gente não existe quando eu ando na escada a escrever os nomes dos namorados das vizinhas nas paredes sim que não é segredo nenhum toda a gente sabe que a D. Mécia do segundo andar embeiçada pelo careca da sapataria aparece sempre alguém que pergunta "pst ó menina quem são os seus pais?" o que eu queria dizer é que ninguém me pergunta "pst ó menina quem são as suas Mães?" por aqui já se vê como eles são tão maus que fazem de conta que mandaram vir a gente de Paris sozinhos eu também vingo-me neles que é uma coisa doida quando me perguntam "pst ó menina quem são os seus pais" e sei que é para irem lá com queixinhas disto e daquilo digo sempre que são dois muito finos que vivem do lado de lá da rua e que pintam os cabelos e os olhos e que não têm mulheres e quando lá vão com as queixinhas é um gozo ouvir o loiraças todo contente a gritar para o outro que está na cozinha "ó filho então não queres lá saber está aqui uma mulherzinha a dizer que temos filhos não achas que tem graça" o que é preciso é chatear os homens o meu pai é do piorio levanta-se e vai para a repartição volta janta e vai para o café e quando está em casa é só para atacar só para atacar "Não sei que fazes ao dinheiro que te dou o Costa dá menos em casa e come carne todos os dias" 

Luís Sttau Monteiro
Ilustração "Mafalda"de Quino

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Mestre




Mestre, meu mestre querido!
Coração do meu corpo intelectual e inteiro!
Vida da origem da minha inspiração!
Mestre, que é feito de ti nesta forma de vida?

Não cuidaste se morrerias, se viverias, nem de ti nem de nada,
Alma abstracta e visual até aos ossos,
Atenção maravilhosa ao mundo exterior sempre múltiplo,
Refúgio das saudades de todos os deuses antigos,
Espírito humano da terra materna,
Flor acima do dilúvio da inteligência subjectiva...

Meu mestre e meu guia!
A quem nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou,
Seguro como um sol fazendo o seu dia involuntariamente,
Natural como um dia mostrando tudo,
Meu coração não aprendeu nada.
Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade.
Meu coração não é nada,
Meu coração está perdido.

Prouvera ao Deus ignoto que eu ficasse sempre aquele
Poeta decadente, estupidamente pretensioso,
Que poderia ao menos vir a agradar,
E não surgisse em mim a pavorosa ciência de ver.
Para que me tornaste eu? Deixasses-me ser humano!

A calma que tinhas, deste-ma, e foi-me inquietação.
Libertaste-me, mas o destino humano é ser escravo.
Acordaste-me, mas o sentido de ser humano é dormir.


Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)
Foto: Lisboa, na Praça da Figueira

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

A minha filha (vendo-a dormir)


Que alma intacta e delicada!

Que argila pura e mimosa!

É a estrela d'alvorada

Dentro dum botão de rosa!

 

E, enquanto dormes tranquila,

Vejo o divino esplendor

Da alma a sair da argila,

Da estrela a sair da flor!

 

Anjos, no azul inocente,

Sobre o teu hálito leve

Desdobram candidamente,

Em pálio, as asas de neve...

 

E eu, urze má das encostas,

Eu sinto o dever sagrado

De te beijar— de mãos postas!

De te abençoar — ajoelhado!

 

Guerra Junqueiro

https://www.youtube.com/watch?v=wfF0zHeU3Zs

sábado, 12 de setembro de 2020

Sonhando com Dacosta

 

A última vez que vi António Dacosta foi em sonhos, nos Açores. Ele estava a sonhar o seu sonho e eu entrei nele como visitante. Posso entrar no seu sonho, Mestre?, perguntei. Ele levantou a tela do quadro que estava a pintar e respondeu: entre lá no meu quadro, faça favor...
Detivemo-nos numa praia. É uma praia de uma minha ilha, disse Dacosta, olhe que bonita que é.
A areia era fina e dourada, salpicada de crustáceos e moluscos, com pequenas concreções azuis que pareciam vindas de outro planeta. Na praia havia uma barraca de madeira pintada de branco e na porta estava escrito: Restaurante. Entrámos e Dacosta cumprimentou o dono.Era um hospedeiro bizarro, com duas asas azuis nas costas e o cabelo vermelho. Esta é a minha Caça ao Anjo, disse Dacosta, é assim que se chama este restaurante, e este é o meu anjo da guarda, o anjo que cuida do meu estômago e da minha alma.
O hospedeiro fez uma vénia, sacudiu as asas e perguntou-me: gosta de anjos de cabelo vermelho?
Gosto, respondi, nunca tinha visto nenhum, mas aqui nos Açores há seres muito bizarros, você não virá por acaso de outro planeta?
Venho de Saturno, respondeu o anjo, toda a gente pensa que em Saturno somos todos saturninos e melancólicos, e pelo contrário temos asas azuis e cabelo vermelho, mas não se trata do Saturno que você julga, é o Saturno que Dacosta sonha...
Dacosta encheu o meu copo de vinho e disse: há um Saturno em que penso há anos, é a ideia de Saturno, mas não é o planeta, é o Deus que preside ao nascimento dos deuses, e este Saturno perseguiu-me sempre, e a ele tinha-o sempre no coração e na alma, porque ouvia a sua voz a dizer-me que um dia haveria de explodir em mim o nascimento dos deuses, e nesse dia haveria de ser feliz.
E você o que é que respondia ao seu Saturno?
Eu ficava calado, respondeu Dacosta, e continuava à espera. 
E depois um dia, os deuses começaram a nascer, normalmente essas coisas sucedem na Primavera mas aconteceu no Outono, comecei a sentir-me esquisito, a minha alma inchou como incha o mar no equinócio, meti-me na cama, fui bebendo uma tisana aguardando o momento de dar à luz. E a certa altura levantei-me, pus-me em frente do cavalete, peguei nos pincéis e nas tintas, tracei duas linhas na tela mas fi-las curvas como esguichos de de água a sair de uma fonte, porque percebi que aquela era a minha geometria. E os deuses chegaram por si próprios, eu comecei a pintar e sentia-me feliz. E pintei vários quadros, num êxtase que não saberia descrever. Aquele foi o dia triunfal da minha vida e não poderei ter outro igual.
O anjo veio à nossa mesa com uma grande travessa. Era um prato de aspecto insólito e magnífico. Perguntei ao anjo que comida era aquela. É uma comida que antigamente se cozinhava aqui, na desaparecida Atlântida, e que hoje quis cozinhar para vocês.

Antonio Tabucchi