Às afirmações dogmáticas, à imposição dos conceitos, o construtor opõe a simplicidade primeira de uma energia que nunca é figurada mas cintila e estremece nas formas subtis da construção. Nas paredes que ergue o longínquo reflecte-se e palpita como uma pálpebra marinha. A proximidade de um rio e de uma pequena ilha no meio dele acompanha-o como uma presença cúmplice e preciosa. O visitante que nunca virá, mesmo quando a casa estiver construída, é a presença da ausência que pulsa e a abertura viva do invisível.
sábado, 20 de fevereiro de 2021
sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021
Não o sabias?
Deixa o pão aberto sobre a mesa. Vê de novo
as searas, os campos descobertos, os sulcos,
a poeira também. Presta atenção. Mais uma vez
procura aquilo de que te alimentas, o seu gosto
ou a prece que devagar pronuncias. É só no interior
dele mesmo que se conserva a temperatura
com que o fizeram, o ar ainda aquecido. Desconhecemos
como chegou o fermento, o modo como outrora
tinha germinado. Não te importes...Leva-o à tua boca,
depois fecha os olhos para assim encontrares
uma outra imagem, as feições desconhecidas
que nele existem. Vê a sua cor, estas sombras,
o contorno cada vez mais simples em que se pode
tocar. Não o sabias? O pão tem um rosto.
Pintura de Josefa de Óbidos
domingo, 31 de janeiro de 2021
O Mandarim
sábado, 30 de janeiro de 2021
Evadir-me, esquecer-me
Evadir-me, esquecer-me, regressar
À frescura das coisas vegetais,
Ao verde flutuante dos pinhais
Percorridos de seivas virginais
E ao grande vento límpido do mar.
domingo, 17 de janeiro de 2021
Auto-retrato
asas no exílio dum corpo.
Os braços calhas cintilantes
para o comboio da alma.
E os olhos emigrantes
no navio da pálpebra
encalhado em renúncia ou cobardia.
Por vezes fêmea. Por vezes monja.
Conforme a noite. Conforme o dia.
Molusco. Esponja
embebida num filtro de magia.
Aranha de ouro
presa na teia dos seus ardis.
E aos pés um coração de louça
quebrado em jogos infantis.
Natália Correia
Pintura de Artur Bual
Poema de Natália Correia em resposta a um deputado do CDS, que se opunha à despenalização do aborto, com o argumento de que o coito era para ter filhos.
Já que o coito - diz Morgado -
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino;
e cada vez que o varão
sexual petisco manduca,
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.
Sendo pai só de um rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou - parca ração! -
uma vez. E se a função
faz o órgão - diz o ditado -
consumada essa excepção,
ficou capado o Morgado.
(Natália Correia - 3 de Abril de 1982 )