sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Tavira 1944

 As mulheres sentavam-se à porta da noite
as mais novas riam
os dentes eram a sua coroa
ou tremiam ao pressentir os passos dos soldados
as crianças riscavam a cal com os seus gritos
cresciam para a morte com grandes olhos claros

ou ramos cegos

Eugénio de Andrade



Postais Antigos de Tavira







Notas sobre Tavira




Cheguei finalmente à vila da minha infância.
Desci do comboio, recordei-me, olhei, vi, comparei.

(Tudo isto levou o espaço de tempo de um olhar cansado).

Tudo é velho onde fui novo.

Desde já — outras lojas, e outras frontarias de pinturas nos mesmos prédios —

Um automóvel que nunca vi (não os havia antes)

Estagna amarelo escuro ante uma porta entreaberta.

Tudo é velho onde fui novo.

Sim, porque até o mais novo que eu é ser velho o resto.

A casa que pintaram de novo é mais velha porque a pintaram de novo.

Paro diante da paisagem, e o que vejo sou eu.

Outrora aqui antevi-me esplendoroso aos 40 anos — Senhor do mundo —

É aos 41 que desembarco do comboio [indolentão?].

O que conquistei? Nada.

Nada, aliás, tenho a valer conquistado.

Trago o meu tédio e a minha falência fisicamente no pesar-me mais a mala...

De repente avanço seguro, resolutamente.

Passou roda a minha hesitação

Esta vila da minha infância é afinal uma cidade estrangeira.

(Estou à vontade, como sempre, perante o estranho, o que me não é nada)

Sou forasteiro tourist, transeunte.

E claro: é isso que sou.

Até em mim, meu Deus, até em mim.


Álvaro de Campos

"Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890..." - Fernando Pessoa

https://www.youtube.com/watch?v=brqC48rNrpI

Tavira de ontem e hoje

Tavira Agosto de 1922

Muros muito brancos, de porta e janela, alguns com gelosias, que é a velha e a melhor maneira de manter as casas sempre frescas. A reixa deixa passar o ar e conserva a meia luz: dá intimidade aos interiores. Nas ruas não passa ninguém. Casas apalaçadas, tumulares.Telhados mouriscos, pontiagudos, de quatro águas, muito caiados, e as chaminés do sul, que lembram reduções de minaretes. Há-as rendilhadas; há-as com filigranas e flores. Outras mais pobres e mais simples, mas sempre aspirando para o céu de Alá. Entre elas e a Geralda a diferença é apenas de tamanho. Brancas, esguias, delicadas, com um pouco de imaginação povoa-se Tavira de torres onde o árabe faz a oração da manhã e da tarde. A alma do moiro está viva. Subjugada, persiste e sonha. Aspira. Perseguida, obstina-se. E para viver faz-se pequenina e contenta-se em deitar fumo...
Tavira é uma terra fechada, concentrada,de gente rica que arrecada o dinheiro do figo, da amêndoa e da alfarroba. Cada fruto destas árvores é um pingo de oiro. Que saudades eu tenho nesta terra neurasténica, da fedorenta Olhão! De Olhão, até o mau cheiro me cheira agora bem...E como compreendo a mudança de fisionomia dos homens e das coisas.. Tavira é uma terra de montanheiros, Olhão é uma terra de pescadores. O pescador é comunista e alegre, o montanheiro desconfiado e triste. No mar não há marcos...

Raul Brandão



Tavira Agosto de 2022





















Lendas de Tavira

Todos nós olhamos para o Algarve como sinónimo de sol, praia, mar e verão…mas Tavira é muito mais do que verão, é uma cidade encantada de arte e história.
A sua história perde-se no tempo, é uma cidade de recantos e encantos, atravessada pelo Rio Séqua e Gilão, que também tem histórias e lendas para contar. 

Diz a lenda que o cavaleiro Gilão e a princesa Séqua de facções militares opostas, apaixonaram-se e os seus encontros secretos eram de madrugada na ponte antiga. Numa madrugada, foram surpreendidos pela facção militar cristã e pela facção militar moura. Como sabiam que seriam acusados de traição, o que os levaria à morte, resolveram antecipar o sofrimento. Cada um atirou-se para um dos lados da ponte caindo os dois ao rio. Daí se explica porque um dos lados da ponte o rio de Tavira chama-se Rio Séqua e do outro lado da ponte o rio chama-se Rio Gilão…




Lenda da moura encantada

Ainda hoje a vigília de São João, é muito festejada em Tavira e quando o relógio da cidade bate meia-noite, ninguém deixa de lembrar-se da Moura encantada que vai surgir dos muros do Castelo de Santa Maria. No tempo em que D. Paio Peres Correia tomou posse do Castelo de Tavira, era seu principal senhor, como já dissemos, Aben Fabilla, e muitos sustentam embora a lenda nada afirme, que a Moura do Castelo era filha deste Senhor e quando D. Paio invadiu Tavira para a conquista por vingança dos sete cavaleiros Aben Tabilla encantou sua filha para que os soldados não abusassem dela esperando mais tarde entrar vitorioso na Vila. E não eram infundados estas esperanças porque a história nos ensina que diversas vilas algarvias entravam e saíam da Coroa Portuguesa por diversas vezes nesse tempo. E assim formando a Lenda de que a Moura era filha do Rei de Tavira, vamos transcrever do Romanceiro do Estácio da Veiga a Lenda em verso.

Estácio da Veiga (1828-1891)











domingo, 21 de agosto de 2022

Uma conversa sem palavras


No princípio era o abraço. Um abraço é uma longa conversa sem palavras. Ele foi para a maioria de nós, ao nascer, o primeiro e reconfortante embalo, mas a necessidade de um abraço acompanha a nossa existência até ao fim.
Há uma tipologia vastíssima de abraços que declina, à maneira de um silabário, aquilo que um abraço pode ser: acolhimento e despedida, congratulação e luto, reconciliação e afago, manifestação de amizade ou de paixão. Os abraços fazem parte da arquitetura íntima da existência, do seu desenho invisível, mas absolutamente presente. São plenitude consentida ao desejo de comunhão que todos trazemos e memória que revitaliza. Os abraços são um mapa para que nos reconheçamos. E isso acontece efetivamente: em abraços quotidianos e extraordinários, abraços dramáticos ou transparentes, abraços alagados de lágrimas ou em puro júbilo, abraços de próximos ou de distantes, abraços fraternos ou enamorados, abraços repetidos ou que, porventura, nem chegaram a acontecer.
O que de mais importante em nós se destina a ser dito soletra-se melhor no silêncio de um abraço, porque aí ocorre isto que é tão precioso: sem defesas, um coração coloca-se à escuta de outro coração.

José Tolentino Mendonça
Pintura de Diego Rivera

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Testamento

Vou partir de avião

E o medo das alturas misturado comigo

Faz-me tomar calmantes

E ter sonhos confusos

 

Se eu morrer

Quero que a minha filha não se esqueça de mim

Que alguém lhe cante mesmo com voz desafinada

E que lhe ofereçam fantasia

Mais que um horário certo

Ou uma cama bem feita

 

Dêem-lhe amor e ver

Dentro das coisas

Sonhar com sóis azuis e céus brilhantes

Em vez de lhe ensinarem contas de somar

E a descascar batatas

 

Preparem minha filha para a vida

Se eu morrer de avião

E ficar despegada do meu corpo

E for átomo livre lá no céu

 

Que se lembre de mim

A minha filha

E mais tarde que diga à sua filha

Que eu voei lá no céu

E fui contentamento deslumbrado

Ao ver na sua casa as contas de somar erradas

E as batatas no saco esquecidas

E íntegras.


Ana Luísa Amaral

https://www.youtube.com/watch?v=VLtGgQjachs

Pintura de Peter Paul Rubens



sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Europa



Europa

Apontas para o rosto sarcástico do sol de Inverno

E disparas. Há tantos meses que não chove – reparaste?

É o próprio céu a desistir de ti. E mesmo assim tu disparas, só sabes disparar.

Estás enganada, Europa. Envelheceste mal e perdeste a humildade.

Não é contra o sarcasmo que disparas, não é contra o Inverno,

Nem sequer contra o insólito, contra o desespero.

Tu disparas contra a luz.

Podes atirar-nos tudo à cara, Europa: bombas, palavras, relatórios de contas.

Podes até atirar-nos à cara um deputado, uma cimeira.

Mas os teus filhos não querem gravatas. Os teus filhos querem paz.

Os teus filhos não querem que lhes dês a sopa. Os teus filhos querem trabalhar.

Há tantos meses que não chove – reparaste?

A terra está seca. Nem abraçados à terra conseguimos dormir.

Enquanto te escrevo, tu continuas a fazer contas, Europa.

Quem deve. Quem empresta. Quem paga.



Mas os teus filhos têm fome, têm sono. Os teus filhos têm medo do escuro.

Os teus filhos precisam que lhes cantes uma canção, que os vás adormecer.

Eu acreditei em ti e tu roubaste-me o futuro e o dos meus irmãos.

Se estamos calados, Europa, é apenas porque, contrários ao teu gesto,

Nós não queremos disparar.


Filipa Leal

Gravura de H. Bunting (séc. XVI)
https://www.youtube.com/watch?v=MTmo_SjR6KQ