domingo, 2 de junho de 2024

Saramago no Porto



O viajante está disposto a não andar de igreja em igreja como se de tal dependesse a salvação da sua alma. Irá a São Francisco, apesar das constantes queixas que vem fazendo contra a talha barroca, que o persegue desde que entrou em Portugal. Em São Francisco rematam-se todas as pontas da imensa cerzidura de ouro lavrado que se repete em receitas, em fórmulas, em cópias de cópias. O viajante não é autoridade, vê este esplendor, que não deixa um centímetro quadrado de pedra nua, aturde-se na magnificência do espectáculo, e acredita que esta seja a melhor talha dourada que no país há. Não se lembre se alguém o afirmou, mas está pronto a jurar: em verdade, quem entrar aqui não tem mais a fazer que render-se. Mas o viajante gostaria de saber um dia que paredes são as que a talha esconde, que pedra merecedora foi condenada à permanente cegueira.
Dá a sua volta, primeiro incomodado com o sadismo verista do altar dos Santos Mártires de Marrocos, depois distraído com as bifurcações genealógicas da Árvore de Jessé, escultura amaneirada e teatral, que faz pensar num coro de ópera. Um dos ascendentes de Cristo traja mesmo calções golpeados, é uma figura paçã do século XVII. E o viajante, olhando o patriarca Jessé adormecido, encontra naturalmente ali uma representação fálica, naquele tronco de árvore que do tronco lhe cresce, até Jesus Cristo, afinal sem mácula carnal nascido. Colocado no centro da igreja, o viajante sente-se esmagado, todo ouro do mundo lhe cai em cima.
Dali seguiu na direcção das ruas principais, mas por travessas e rampas desviadas. Afinal, o Porto, para verdadeiramente honrar o nome que tem, é primeiro que tudo, este largo regaço aberto para o rio, mas que só do rio se vê, ou então, por estreitas bocas fechadas por muretes, pode o viajante debruçar-se para o ar livre e ter a ilusão de que todo o Porto é Ribeira.

José Saramago

terça-feira, 28 de maio de 2024

O Porto de Sophia

Nasci no Porto. A cidade, os seus arredores, as praias próximas, descendo para o Sul, permanecem para mim a pátria dentro da pátria, a Terra materna, o lugar primordial que me funda.

Ali estão as tílias enormes, as manhãs de nevoeiro, as praias saturadas de maresia, os rochedos cobertos de algas e anémonas, as Primaveras botticellianas, os plátanos, a cerejeira, as camélias.

Ali o rio, as casas em cascata, os barcos deslizando rente à rua nas tardes cor de frio do Inverno.

Ali o cais, a Ribeira, os rostos, as vozes, os gritos, os gestos.

Uma beleza funda, grave, rude e rouca. Escadas, arcadas, ruelas abrindo para o labirinto do fundo do mar da cidade. E, aqui e além, um rosto emergindo do fundo do mar da vida.

Porque ali é a cidade onde pela primeira vez encontrei os rostos de silêncio e de paciência cuja interrogação permanece.

Porque ali é o lugar onde para mim começam todos os maravilhamentos e todas as angústias.

Cidade onde sonhei as cidades distantes, cidade que habitei e percorri na ilimitada disponibilidade interior da adolescência.

Descia pelo Campo Alegre, passava a Igreja de Lordelo, seguia entre muros de jardins fechados.

Através das grades de ferro dos portões viam-se rododendros, buxos, cameleiras.

Depois surgia um rio e ao longo do rio eu caminhava sobre os cais de pedra, até à barra, até aos rochedos onde se espraiam as ondas.

Histórias de naufrágios, de barcos perdidos, de navios encalhados. Por isso nas noites de temporal se rezava pelos pescadores. Ouvia-se ao longe o tumulto do mar onde navegavam os pequenos barcos da Aguda tentando chegar à praia. Quando a trovoada estava próxima, a luz apagava-se. Então se acendiam velas e se rezava a Magnífica. […]

Porque nasci no Porto sei o nome das flores e das árvores e não escapo a um certo bairrismo. Mas escapei ao provincianismo da capital.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Foto da casa Andresen

https://www.youtube.com/watch?v=Op2klbYYLIk



A velha e livre cidade do Porto

A velha e livre cidade do Porto, onde há pouco tempo ainda só se podia entrar a tremer sobre pontes, com licença paga, por um túnel, ou revistado de cima a baixo e cujos forais não permitiam a fidalgo, nem poderoso, nem abade bento, o poisar nela mais que três dias, é muito velha no meu sangue e na minha consciência. 
A grande pedra de ara da minha meninice, o Marão, dividia o mundo em dois. E na metade que se não via ficava esse Porto só adivinhado, mas donde vinha já, positivo e genuíno, o que ele tinha de seu: a sólida alimentação do corpo, conquistada a mortificação, e o fermento para levedar um pão mais alto.
Com os anos, essa primeira descoberta alargou-se. E um Porto já de carne e osso, complexo como todas as realidades, entrou-me na candura dos dez anos. Em Cedofeita, a continuar a cavadela deixada em meio pelos que me deram à vida, e na Sé, a olhar pasmado aquelas pedras lavradas, o negativo e o positivo harmonizaram-se na mesma visão reveladora. O Porto real e maravilhoso era uma soma de trabalho e sonho. Trabalho duro, contínuo, com lágrimas amargas a refrescá-lo, e dias santos de libertação, com licença de fuga para as alamedas do intemporal.
Foi muito tempo depois, já quando a triste sabedoria dos anos me explicara as coisas mais pelo íntimo, que voltei a ver a velha cidade. Regressava eu de longes terras, seco dos Cearás da emigração, e punha em todas as lembranças a saudade quente que nelas deixa uma infância por acabar. O Porto era uma dessas recordações. E da trémula ponte D. Maria, suspenso do abismo fluvial e da minha emoção, verifiquei deslumbrado, que estava diante do mesmo Porto de sempre, espraiado na sua encosta, firme, amplo, de boas cores camoesas, humoso e desgraçado na Ribeira, espirital e feliz nos cumes das torres.
É uma admirável certeza esta que os anos nos dão de que a tendência de tudo é para o equilíbrio. O Porto, em muitos aspectos da sua vida, tem sabido encontrar esse equilíbrio. Por isso mesmo, quando tropeço num descrente da sua grandeza e da sua pureza, digo:
- Se as grandes inquietações sociais bateram a esta porta e entraram, se foi aqui dentro que estiveram cercadas as liberdades e romperam o cerco, se a junta da Patuleia se instalou nestas ruas, se o Trinta e Um de Janeiro explodiu na sua alma, se, enquanto se queimava o semelhante a torto e a direito em Lisboa, no Porto houve apenas um auto de fé, e se foi do seu coração que se ergueu a primeira voz contra a pena de morte em Portugal, - haja confiança! As ilhas, a miséria e o resto só duram enquanto um exame de consciência profundo não se faz.
E, sobretudo, que o Porto mantenha inteira, lusitana e pagã, a báquica festa de S. João!

Miguel Torga
Gravura de Roque Gameiro alusiva à revolta Maria da Fonte/Patuleia



Hino Maria da Fonte
Baqueou a tirania
Nobre povo, és vencedor,
Generoso, ousado e livre,
Demos glória ao teu valor.

Refrão:
Eia avante, Portugueses!
Eia avante, não temer!
Pela santa Liberdade,
Triunfar ou perecer!

Algemada era a Nação,
Mas é livre ainda uma vez;
Ora, e sempre, é caro à Pátria
O heroísmo Português.

Lá raiou a Liberdade
Que a Nação há-de aditar!
Glória ao Minho que primeiro
O seu grito fez soar!

Segue, ó Povo, o belo exemplo
De tamanha heroicidade:
Nunca mais deixes tiranos
Ameaçar a Liberdade.

Fugi déspotas! Fugi,
Vis algozes da Nação!
Livre, a Pátria vos repulsa,
Terminou a escravidão!

Letra composta por Paulo Midosi, 1846

segunda-feira, 27 de maio de 2024

No Porto - (1893)


Há pequenos burgos acastelados em Espanha e na Itália, de composição talvez mais fantástica, mas não têm a variedade que a vastidão do Porto oferece, nem um rio correndo entre muralhas de penedos afeiçoados à marrã por ciclopes, nem a proximidade do mar sempre agitado, que além de lhe alargar o horizonte humedece-lhe a atmosfera, repassando-a de tons de pérola mimosíssimos. Em certas manhãs os efeitos da neblina são incomparáveis; erguem-se muito mais alto os montes em que a cidade assenta; as igrejas, os edifícios públicos, tomam proporções colossais, dominados pela Sé, e pelo palácio episcopal que parece a ampliação do Vaticano; o movimento nas pontes é de monstruosos vultos; em baixo, no rio, os saveiros abrem caminho pela cerração, tripulados por gigantes; e os barcos "rabelos", com as suas formas estranhas, as arrogantes proas de combate, dir-se-ia saídos do espectaculoso cenário de alguma epopeia, ou conduzir o Lohengrino e o seu cortejo.
A torre dos Clérigos, recortada e enfeitada como um desmedido círio de fabulosa romaria, assoma ao cimo da rua íngreme, ameaçando despenhar-se por ela abaixo, entre os rolos da névoa que a enchem.
Mas tudo reveste incerto aspecto, aparências tão pouco sólidas, que em certos momentos quase se espera que uma rajada de vento arrase e desfaça para sempre aquele quimérico espectáculo...

Manuel Teixeira-Gomes
Aguarela de Júlio Resende

domingo, 5 de maio de 2024

Fumo


A luz da manhã limpou as sombras da noite,

num gesto de vassoura, atenta e rápida.

Agora, tudo é suave e transparente, como 

o frio seco que sacode os pássaros e as folhas.


Passo neste mundo natural que a manhã 

me oferece; e só falta um fio de fumo

dessas cinzas em que o dia aquece as mãos,

enquanto o vento não sopra a apagá-las.


Dia e noite juntam-se nesse fumo

em que o céu respira; e a sua linha

desenha no ar uma frágil fronteira.


Para um lado, o espaço sem limites

em que tudo permanece; para aqui, o breve

sentimento do eterno, antes que o fumo se dissipe.


Nuno Júdice

https://www.youtube.com/watch?v=WRIbIIVzB5M&t=125s




terça-feira, 23 de abril de 2024

Jograis aos 50 anos do 25 de Abril

Maio de 68, Paris. Tudo começa com os estudantes que ocupam as faculdades e as ruas de alguns bairros de Paris. Exigem a reforma do ensino, contestam todo o tipo de preconceitos e autoritarismos. É o tempo do “É proibido proibir”. Os trabalhadores aderem à revolta, o país paralisa. A França treme.

Por cá, em 1969, os estudantes de Coimbra em greve resistiram durante bastante tempo à chantagem e perseguição das autoridades que, através da censura, controlavam toda a informação.

Apesar de algumas proibições, ouviam-se muito as baladas e canções de intervenção. Por isso através delas podemos reviver todo o processo do 25 de Abril.

“ O que faz falta é agitar a malta/ o que faz falta…” cantava José Afonso.

Do exílio Manuel Alegre escreve e Adriano Correia de Oliveira interpreta: “Pergunto ao vento que passa /Notícias do meu país… Mesmo na noite mais triste/Em tempo de servidão/Há sempre alguém que resiste/Há sempre alguém que diz não.

Vários cantores criticam a guerra colonial cantando: “Menina dos olhos tristes/o que tanto a faz chorar/o soldadinho não volta do outro lado do mar.”

A PIDE perseguia, prendia e muitas vezes torturava os opositores ao regime. A canção “Vampiros” de José Afonso lembra essa realidade: “No céu cinzento sob o astro mudo/ Batendo as asas pela noite calada/Vêm em bandos com pés veludo/Chupar o sangue fresco da manada… Eles comem tudo/e não deixam nada.”

Mas nunca se perdeu a esperança, diz o poema de António Gedeão e canta Manuel Freire: “Eles não sabem nem sonham /que o sonho comanda a vida…”

Em 1971, nos álbuns de José Mário Branco “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” e de Sérgio Godinho “ Sobreviventes” pressente-se a revolução. Sérgio canta: ”Aprende a nadar companheiro/que a maré se vai levantar/que a liberdade está a passar por aqui…”

E finalmente a revolução, o 25 de Abril de 1974:

“Esta é a madrugada que eu esperava/O dia inicial inteiro e limpo/Onde emergimos da noite e do silêncio/ E livres habitamos a substância do tempo” (Sophia de Mello Breyner Andresen)

Foi inesquecível. O povo saiu à rua para saudar a revolução ao som de “Grândola Vila Morena”, de cravo na mão. “A poesia está na rua” lia-se num cartaz de M. H. Vieira da Silva. Agora os portugueses já podem reunir-se e participar em manifestações. “O povo unido jamais será vencido” grita-se.

E todos cantávamos com Sérgio Godinho:

“Ai, só há liberdade a sério/Quando houver/A paz, o pão/Habitação, saúde e educação…”

Pois… 50 anos depois esta canção continua actual!


HN

https://www.youtube.com/watch?v=ohV3KeGOnTw

segunda-feira, 15 de abril de 2024

Em diálogo com "As mulheres do meu país"



Entre 1947 e 1949, a escritora e jornalista Maria Lamas percorreu o país, indo a várias localidades de norte a sul e visitando as ilhas, para retratar as mulheres portuguesas. 
 
Maria Lamas viaja para denunciar a falta de condições de vida. Escreve sobre pobreza, fome, maus-tratos. Excesso de trabalho. Analfabetismo. Ignorância. Isolamento. Mas também escreve - com satisfação e algum choque - sobre música, o riso, a vitalidade que encontra por todo o lado, mesmo durante as estações mais frias e nos lugares mais escuros do país. 
Grande parte das mulheres sobre as quais escreve são raparigas e aqueles anos de juventude são o tempo mais alegre da vida delas.
Seja qual for o país.

Nas aldeias havia sempre festas, em muitas delas havia bandas de música e também se fazia teatro amador. 
A aldeia da minha avó era uma dessas aldeias e o meu bisavô um desses dinamizadores culturais que se tornavam importantes nas pequenas terras. Para além de tocar música, ele montava peças de teatro em que a minha avó e o meu avô acabavam por participar.
Embora raramente a minha avó falasse desse passado com saudade - ao contrário da vida com os filhos a crescer em Luanda mais tarde - , ela devia ter saudade. Havia nela e nos seus silêncios - na sua calma interior que ninguém na família herdou - uma melancolia que só podia vir desses tempos de juventude.

Maria Lamas conta que no momento em que as raparigas casam, felizes, sabendo que finalmente vão sair da casa de pais que as prendem para começar uma vida delas, não podem saber como é o marido. Se ele é dos que batem, não o descobrem com surpresa. Constata que as próprias mulheres culpam as mulheres  sujeitas a essa violência, assim como se acreditassem estar a salvo. Como se dependesse realmente delas salvarem-se de homens violentos.
Também escreve sobre o conceito de "virtude feminina", e fá-lo com o mesmo tom que usa para descrever alguns trajes ou certos costumes supersticiosos: denotando esperança de que em breve seja algo anacrónico.

Escrevendo tanto sobre a vida dentro de casa, contando como as pessoas dormem (vários numa cama e alguns filhos com animais), como as crianças comem (alimentando-se das mães mesmo quando as mães mal se alimentam e se fortificam com vinho), como os bebés nascem em quartos pequenos com gente aos gritos, mulheres que insultam os maridos e põem roupas de homem para parir, falando de outros hábitos quase bárbaros, referindo doenças que advêm da promiscuidade dos maridos, nunca se fala sobre sexo. Nunca se pergunta sobre sexo. Sob nenhum ponto de vista: nem da obrigação dele, quando os maridos estavam em casa, nem da falta dele, quando os maridos se ausentavam às vezes durante tanto tempo.

 Susana Moreira Marques

Pinturas de José Malhoa

https://www.youtube.com/watch?v=OL5sBSaT7P0