sábado, 27 de outubro de 2012

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 A Praia das Maçãs de novo, a casa dos meus pais de novo. Todos os anos prometo a mim mesmo
   - Foi o último
   e ignoro, sinceramente, o que me faz voltar. Saudades de quê? Nunca me senti especialmente feliz aqui, as pessoas das famílias com quem a minha família se dava não me interessam, estou a escrever um livro e passo os dias no quarto, à noite a neblina desbota para  dentro de mim e entristece-me: o que me fará voltar? Os meus irmãos, de quem gosto muito, a luz, de quem gosto também, e não é isso, meu Deus, não é isso. A minha infância? O menino que deixei de ser tornou-se um antepassado e em certa medida uma criatura enigmática, distante, da qual sou filho ou neto, da qual conservo uns traços: o orgulho, a paciência, a solidão. O sorriso, talvez. Já em criança se me afigurava  esquisito haver nascido dos meus pais: herdei pouca coisa deles, acho eu, qualidades, defeitos, parecenças físicas. A violenta insegurança do meu pai e a secura da minha mãe impacientavam-me: tive de me construir sozinho, não contra eles mas de costas para eles, e julgo que isso foi bom: tornou-me livre. Estou-lhes grato por não me terem dado nada a não ser a matéria de que me modelei. Pensando melhor acho que herdei a austeridade, o desprendimento. Não me é difícil ir embora, a qualquer momento, seja para onde for, sem necessitar de mala. O  que preciso cabe, literalmente, nos bolsos das calças(...)
   Mas não é disso que se trata aqui, é da Praia das Maçãs e de mim. Se me perguntassem
   - Gostas da Praia das Maçãs?
   hesitava. E no entanto, reparo, povoa os meus livros. Como Nelas, vila tão amada, a que regresso sempre  que posso. Se gosto da Praia das Maçãs? Não tenho nada em comum com as criaturas que aqui veraneiam, nem as cumprimento sequer
   (- O António é tão malcriado)
    porque não as vejo e, se as visse, não teria paciência, vejo os pinheiros, o mar
   (para esses tenho paciência)
   os da terra que me conhecem desde sempre
   (para esses tenho paciência)
   ando um bocado a pé, por aí, ao acaso, num intervalo do livro, passo pela casa da minha tia Bia como se ela não tivesse morrido, apetece-me entrar na sala, estarmos juntos, calados, diante da televisão apagada. Não a esqueci, tia, não a vou esquecer. Que mais? Na minha família não somos especialmente divertidos nem faladores, uma implacável discrição cobre o afecto, não se fazem perguntas pessoais, não se comenta a vida de ninguém. O que me fará voltar? Julgo que volto pelos meus irmãos. Por um certo melro no pinhal. Pelo cheiro das ondas. Pela tal criatura de que sou filho ou neto e a quem, a esse sim, devo o que sou. Para que o ar da praia lhe dê boas cores. Para reencontrar as suas aspirações confusas, a febre dos seus entusiasmos, as suas ingénuas certezas.

António Lobo Antunes
http://www.youtube.com/watch?v=4240QMQ1jhU

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