domingo, 12 de outubro de 2014

Desejar a viagem


Partir, seguir as pisadas do pastor, é experimentar um género de panteísmo extremamente pagão e reencontrar os vestígios dos antigos deuses - deuses das encruzilhadas e da sorte, da fortuna e da embriaguez, da fecundidade e da alegria, deuses das estradas e da comunicação, da natureza e da fatalidade - e libertar-se das amarras, das limitações e das servidões do mundo moderno. O seu périplo abarca todo o planeta e vale-lhe a condenação daquilo que delimita e escraviza: o Trabalho, a Família e a Pátria, pelo menos no que diz respeito às limitações mais visíveis e identificáveis.
Enquanto nómada auto-suficiente, o viajante recusa o tempo social, colectivo e limitador, em proveito de um tempo singular construído a partir de durações subjectivas e de instantes festivos apetecidos e desejados. Associal, insociável, irrecuperável, o nómada ignora o relógio e guia-se pelo Sol e pelas estrelas, aprende com as constelações e com o movimento do astro no céu, não tem horário, mas possui um olho de animal acostumado a distinguir as alvoradas, as auroras, as trovoadas, as abertas, os crepúsculos, os eclipses, os cometas, as cintilações estelares, sabe ler as nuvens e decifrar as suas promessas, interpreta os ventos e conhece os seus hábitos. O capricho governa os seus projectos em comunhão com os ritmos da natureza. Ele e o uso que faz do mundo, nada mais importa - daí fazer parte dos banidos e dos recusados. Quando se faz à estrada, obedece a uma força que, brotando do seu ventre e dos meandros do seu inconsciente, o coloca no caminho, o impulsiona e abre-lhe o mundo como um fruto exótico, raro e dispendioso. Desde o primeiro passo, realiza o seu destino. Nos caminhos e nos trilhos, nas estepes e nos desertos, nas ruas das megalópoles ou na desolação das pampas, na onda profunda ou no ar perpassado por correntes invisíveis, o encontro com a sua sombra é inevitável - ele sabe que não tem escolha.

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