segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Receita de Ano Novo


https://www.youtube.com/watch?v=TaFr7cYlRNo

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano

não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

Carlos Drummond de Andrade
Caricatura de Bordallo Pinheiro

sábado, 21 de dezembro de 2024

Casa de família




Av. Dr. Lourenço Peixinho, 1953

Iluminaçóes de Natal 2022

Era na casa de Aveiro que toda a família se reunia, para comemorar as datas importantes como o Natal e passar uns dias de férias. No tempo da avó juntavam-se as quatro gerações: a avó, os seus filhos, netos e bisnetos. Era  uma casa de portas abertas onde, por princípio, se arranjava sempre mais um lugar à mesa e uma cama para dormir para os familiares e amigos.
Normalmente reinava a boa disposição à mesa, todos brincavam e gozavam uns com os outros. Além disso se, por acaso, alguma iguaria era muito do agrado de alguém, este utilizava a táctica de começar a dizer mal, mas mesmo muito mal da comida, porque se os outros não comessem, mais ficava para ele! Existia um “Livro de Reclamações”, como em qualquer unidade hoteleira que se preze (!), colocado bem à vista de todos na casa de jantar. Às vezes divertiam-se imenso a reler, por exemplo, as queixas apresentadas pelos netos, quando ainda eram crianças e adolescentes.
Voltando mais atrás, esta casa testemunhou e tinha sofrido imenso com as traquinices dos filhos quando crianças (principalmente dos dois mais velhos). Imaginem sapatinhos a voar pelas janelas para grande desespero da avó e, melhor ainda, uma vez arremessaram paus (daqueles normalmente utilizados para ajustar o tapete aos degraus das escadas) através da janela do sótão estilhaçando violentamente os vidros que recobriam o espaço entre os dois prédios. E que dizer das escavações que fizeram nas paredes do sótão, como se procurassem algum tesouro! 
Na verdade, na sua meninice, os filhos tiveram a sorte de gozar de bastante liberdade para brincar dentro de casa. Podiam andar  de triciclo e  até de comboio com as cadeiras  que arrastavam  pelo corredor! Quando os pais saíam à noite era um forrobodó: saltavam em cima dos colchões das camas que serviam de trampolim e treinavam a pontaria com as almofadas tentando acertar nas cabeças uns dos outros. Contavam com a cumplicidade da empregada, nesse tempo interna que, enfim, era apenas um pouco mais velha do que eles.
Mais tarde, como todos os adolescentes, gostavam de ouvir música (discos em vinil, normalmente um long play) com o volume de som tão alto que se ouvia do outro lado da avenida. O avô sentia um grande orgulho na sua aparelhagem que, pela sua qualidade (as colunas eram enormes, o gira-disco com uma agulha especial), suscitava a admiração dos amigos dos filhos.
Não foram muitos, mas ficaram famosos os bailes que tiverem lugar nesta casa, apadrinhados pela avó, para comemorar o aniversário dos seus descendentes, possibilitando um convívio rapazes/raparigas pouco habitual antes do 25 de Abril.
Entretanto os filhos cresceram, tornaram-se  adultos e cada um foi à sua vida… No entanto a ligação à casa de família em Aveiro manteve-se e foi transmitida às gerações mais novas.
Falta dizer que esta avó era uma espécie de castelã e esta casa o castelo encantado de todas as crianças que por aí  passaram.

HN


terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Retrato do artista quando coisa


A maior riqueza do homem é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou - eu não
aceito.
Não aguento ser apenas um sujeito que abre
portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que 
compra pão às seis horas da tarde, que vai lá fora,
que aponta lápis, que vê a uva etc.etc.
Perdoai.
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando borboletas.

Manoel de Barros
Aguarela de Maria Keil




segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

O mundo que virá

Os amigos esperavam-me mais adiante
mas por engano ou por instinto
saí do comboio naquele lugar
uma estação vazia onde não se chega 
mas se naufraga
um mundo diferido, estirado como uma pantera
sem caminho de regresso
do qual não restará história

Será que se compreende melhor 
a vida em sítios assim
que parecem a princípio mais pavorosos
do que a realidade?

A fuligem deixada a intervalos pelas camionetas
os blocos de apartamentos que repetiam
no espaço visível o mesmo erro
um grupo de jovens africanos acantonados
as mãos como se cada veia lhes tremesse
rostos magros, com um sorriso ingénuo
por qualquer razão era triste passar através deles

Só a piedade pode falar ao mundo que virá
e restolhar entre o destino quando escurece
como se de facto aguardássemos 
um outro nome

José Tolentino Mendonça

Pintura de Malangatana

https://www.youtube.com/watch?v=GNEbEAk5dCA