domingo, 23 de fevereiro de 2025

Um exemplo de mulher



LEITORA

Confesso o vício de ler
afago
cada palavra

Bebo o feitiço das histórias
cada rosa cada asa
por onde a busca se enlaça

Revolvo-me na ruptura
ou na ternura descalça
onde a caneta sutura

Tomo o corpo da leitura
enredo-me no seu abraço
ora vestida ora nua

Ao longo deste prazer
não há nada que eu não faça
em entrega e em devassa

Indo mais longe no ler
encontro o cisne e a rola
na tocaia do prazer

Tenho a paixão da leitura
teima na escrita do perigo
e estremeço de prazer ao entreabrir um livro

Corro as mãos nas suas espáduas
desnudo frases de feltro
afloro as suas pálpebras

Entrelaço as consoantes
com as vogais e o enredo
diante das fantasias no sobressalto do medo

Descubro escusas passagens
pelas cisternas dos livros
ao desfolhar suas páginas

Na entrega e no sustido
nas lágrimas e no sorriso
entre o ardil e o tigre

Ora cumprindo
a harmonia
ora querendo a transgressão

Sou uma leitora voraz
tenho um trato com a audácia
e outro com o perdimento (...)

Deleito-me com a poesia
endoideço com o romance
esquivamento das mulheres
 
com a sua escrita de leite
de linho e alquimia
de aço rumorejante
 
Encontro a rima cismada
dobo a palavra a vapor
na teima de quem porfia
 
Vou em busca do fulgor
corro atrás da literatura
dos textos e da leitura
 
Sou dependente dos livros
sem eles posso morrer 
perco-me de tão perdida se proibida de ler




DIAS DE SABOR

Dias de sabor dias dividendos
mordidos se bem 
não julgue cedida

eu vi
o que custa estar morta
por dentro
se bem que acredite que os outros
nos fitem

distância tão grande 
que não tenho dedos

que cresçam
que cresçam

para lhes tocar

que vençam
e rasguem
aquilo que prendem
o sítio onde os outros
estão a vigiar.

Maria Teresa Horta
                                         


Auto-retrato de Aurélia de Souza




Frida Kahlo



                                                           
                                                                   Menez







































sábado, 15 de fevereiro de 2025

Das Sagas e das Lendas


O seu nome era Octavius,
que quer dizer oitavo em descendência...

Casou com Agripina, herdou tribuna,
tiveram filhos, terras
que lhe herdaram o nome -
o nome dele, que o nome dela de pouca serventia:
nem rito de passagem

E a linhagem (parecia)
foi clara e sossegada

Astrid veio uns séculos depois, em embarcação esguia
coberta de plumagens e dragões, 
desembarcou com Igor e guerreiros,
ali chegados não só para pilhagem
de terras e mulheres, mas para as bem lavrar
(às mulheres e às terras)

E límpida (parecia)
Lhes foi progenitura

Mas por certo algum curto vórtice de luz,
ou deus de natureza, ou deus qualquer,
não fez perfeita a história acontecida,
e ao baralhar os naipes de outra forma
criou pares novos numa arca nova...

O filho de Igor: baixo,
íris escura

Igor bramando a Thor e a Odin,
ah, os trovões clamados, Astrid sussurrando-lhe
ao ouvido, dizendo-lhe nem sei, não compreendo
como aconteceu, mas ele era tão hábil e gentil, 
tinha uns olhos rasgados, falava-me de estrelas, 
e o o seu perfil, um pouco estonteante,
e tu estavas em guerra -

E um dos filhos de Octavius, seu herdeiro por lei,
com olhos muito azuis

ah os murros fincados sobre a pedra do lar, 
Agripina dizendo-lhe nem sei, perdoa meu amor,
não compreendo como se passou,
mas ele tinha tranças e eram louras,
e chegou devagar, não fez estrondo de trovão nenhum
(como disseste que eles sempre fazem)
e trazia uma pedra cintilante, dizia ser o deus 
que o protegia e que o acompanhava, 
e tu estavas em guerra -

E assim por aí fora, 
assim deve ter sido, assim foi,
de certeza mais segura

Célticos imigrantes, africanos, alguns árabes
fugidos sorrateiros do fim do continente,
mas que a lenda parece ter esquecido dos efeitos futuros,
e quanto a isso tentou ser obscura

E godos, visigodos, pictos, germanos, hunos,
alguns casando por amor e terras, outros por terras
e talvez amor, outros porque ordenados
pela ordem das terras e dos usos,
mas na verdade amando o vizinho do lado
em vez da doce esposa, alguma esposa
ansiando das ameias a aia cumpridora e desejante -
mas todos dando filhos, pretexto para saga,
mais tarde literatura

E sempre eles em guerra -

Ah como sabe bem,
como é reconfortante
pensar que nesta circular e comum terra
há os limpos e puros!

Ana Luísa Amaral
Pintura de Francis Picabia

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Eu sou...

Eu sou todas as criaturas e todas as cousas. Eu, na verdade, não sou eu; sou o Chizinho, com um talher de prata, dentro duma casa esburacada; sou o Chico Nozes e o seu remorso vagabundo; sou a Gravuna e a sua fome; sou o Gesso a pedir esmola para as almas; sou a Beatriz e a sua morte na flor da idade; sou o Silvino e a sua loucura primaveril e sou a procissão de Quinta-Feira Santa de Trevas... e aquela nuvem ao vento e aquela árvore desgrenhada como as tranças da Aflição...

Eis o assunto deste livro: certas pessoas e certas cousas que o Tempo espectralizou na minha lembrança.
Amei-as, assimilei-as; não as distingo do meu ser - floresta de sombras ao luar...

O homem é como um cego que só se vê sonhando. Sonha que vê... Nada mais.

Já notou o leitor as pegadas de certas horas que ficam para sempre em nosso rosto? Embora gravadas na alma, sobem ao nosso rosto e ali ficam para sempre.
A fisionomia vai guardando, em linhas materiais, o íntimo desenho das impressões que vibram através da nossa alma. Cada impressão é uma vibração escura ou luminosa...um demónio ou um anjo dados num estremecimento repentino. E este abalo é a nossa profunda surpresa ante um milagre.
A alegria é um anjo; a tristeza é um demónio... A alegria é um demónio dourado; a tristeza um anjo negro.

O leitor já notou...O leitor? Sim: o meu leitor ideal que eu não troco por todos os leitores de carne e osso... O meu leitor ideal! És tu; sou eu, sou eu mesmo... aquele espectro que me não deixa. És tu, meu cara leitor... Por tua causa, escrevo noite e dia e me consumo neste delírio quixotesco de lançar palavras ao vento... Há outros que atiram pedras, de tal modo concebem a realidade! Uma pedra existe. E as palavras existem, porventura?

Teixeira de Pascoaes