sexta-feira, 21 de março de 2025

A propósito de guerras

Salvador Dali



Receita para fazer um herói

Tome-se um homem,
Feito de nada, como nós,
E em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda, irracional,
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim.

Serve-se morto.


Reinaldo Ferreira

https://www.youtube.com/watch?v=VMbJ3bQUPRs





Maria Helena Vieira da Silva "Naufrágio"


 Elegia I

Dest'arte me chegou minha ventura

a esta desejada e longa terra,

de todo o pobre honrado sepultura.

Vi quanta vaïdade em nós se encerra,

e dos próprios quão pouca; contra quem

foi logo necessário termos guerra.

Que üa ilha que o rei de Porcá tem,

que o rei da Pimenta lhe tomara,

fomos tomar-lha, e sucedeu-nos bem.

Com üa armada grossa, que ajuntara

o vizo-rei de Goa, nos partimos

com toda a gente d'armas que se achara,

e com pouco trabalho destruímos

a gente no curvo arco exercitada;

com mortes, com incêndios, os punimos.

Nela nos detivemos sós dous dias,

que foram para alguns os derradeiros,

que passaram de Estige as águas frias.

Oh, lavradores bem-aventurados!

Se conhecessem seu contentamento,

como vivem no campo sossegados!

Dá-lhes a justa terra o mantimento,

dá-lhes a fonte clara a água pura,

mungem suas ovelhas cento a cento.

Não vêm o mar irado, a noite escura,

por ir buscar a pedra do Oriente;

não temem o furor da guerra dura.

Vive um com suas árvores contente,

sem lhe quebrar o sono sossegado

o cuidado do ouro reluzente.


Luís de Camões (texto com supressões)




Júlio Pomar



A guerra, que aflige...

A guerra, que aflige com os seus esquadrões o Mundo,
É o tipo perfeito do erro da filosofia.

A guerra, como tudo humano, quer alterar.
Mas a guerra, mais do que tudo, quer alterar e alterar muito
E alterar depressa.

Mas a guerra inflige a morte.
E a morte é o desprezo do Universo por nós.
Tendo por consequência a morte, a guerra prova que é falsa.
Sendo falsa, prova que é falso todo o querer-alterar.

Deixemos o universo exterior e os outros homens onde a Natureza os pôs.

Tudo é orgulho e inconsciência.
Tudo é querer mexer-se, fazer coisas, deixar rasto.
Para o coração e o comandante dos esquadrões
Regressa aos bocados o universo exterior.

A química directa da Natureza
Não deixa lugar vago para o pensamento.

A humanidade é uma revolta de escravos.
A humanidade é um governo usurpado pelo povo.
Existe porque usurpou, mas erra porque usurpar é não ter direito.

Deixai existir o mundo exterior e a humanidade natural!
Paz a todas as coisas pré-humanas, mesmo no homem,
Paz à essência inteiramente exterior do Universo!

Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)






Malangatana


Porém, o amor existe

O medo,  neste século, já não é um  produto artesanal.
Os aviões bombardeiros
- ou, em tempo de paz, , as falências imprevistas -
impressionam pela tecnologia posta em acão.
Hoje, passa-se fome de modo bem mais moderno
do que no século VIII, por exemplo.


A vida é isto: a lua está mais próxima 
de alguns  que treinam para astronautas
que um prato quente da boca de outros homens.
É aquilo a que podemos chamar: distâncias
relativas. Por mim não me queixo.
Estômago cheio, boas pernas, boa cabeça.

As paixões, exageradas ou não, deveriam
ser protegidas como certas espécies animais
em risco de extinção. É que até o amor ficou pálido
depois de certos povos maltratarem, de modo organizado,
conjuntos de pessoas
que falavam outra língua e lembravam outro passado.
Os homens não são seres vivos que mereçam
especialmente o amor. Porém, o amor existe.

Gonçalo  M. Tavares

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