domingo, 22 de janeiro de 2012

Coração Andarilho


O que seria a Espanha para mim aos 10 anos? Um país que inicialmente se resumia a uma terra chamada Galícia, povoada de lendas e seres inquietos, dispostos a partir em busca de novos territórios. Habitantes, no entanto, movidos pelo instinto de volta, alimentados pelo fervor da saudade. Tendo como desculpa a origem celta, indomáveis desbravadores do imaginário.
Galícia recebeu-me ao longo de dois anos. Uma travessia cumprida através do meu crescimento físico, das descobertas incessantes, das mudanças sazonais, da conquista de duas línguas aprendidas simultaneamente, o galego, com paladar montanhês, que se fundiu um dia com o português, e o castelhano, altivo e descampado. Ambas as línguas impregnaram-me a sensibilidade para o viver linguístico de outros povos(...)
A partir de agosto, com as festas de verão, a vida se intensificava. A cada domingo havia que se deslocar para a aldeia cujo calendário celebrava o seu santo, o padroeiro do local. A protetora de Borela era Nossa Senhora de "Dolores"; cuja comemoração atraía amigos e curiosos. A festa começava com o leilão em que as famílias disputavam o privilégio de carregar sobre os ombros o andor com a santa em destaque. Após a missa, a praxe era a reunião no átrio, quando se dançava ao som dos gaiteiros contratados para esta finalidade.
As festas, quase medievais, pertencentes à comunidade, enfeitavam-se com flores, guirlandas, bandeiras, e havia fogos de artifício. Também leilões, feiras, exibições, comidas típicas, sem falar nas gaitas de foles.
Chamada de "a brasileira", eu participava intensamente dos festejos. Lidava com o tesouro das lavouras galegas, com as práticas camponesas, intuindo que aquele povo, condenado ao pungente esforço de arrancar da terra milho, batata, nabiças, também sabia rir, contar histórias, fruir o tempo, conquistar a América. E ainda amava as vacas, os porcos louros, gigantes como Teseu. Alguns destes suínos atingindo a marca de trezentos quilos de carne e gordura. Tal circunstância não lhes prejudicando a elegância, quando seguiam em direção ao rio. Pois, ao contrário do que se acreditava, tinham índole limpa, amavam a água. Banhavam-se longamente à beira do rio, fazendo companhia às lavadeiras(...)
Era comum sentar-me no final da tarde, ao lado dos velhos à beira da morte, cobrando-lhes histórias que podiam ser de um bisavô, vizinho, bandoleiro, do repertório da guerra civil.
E, enquanto eles davam início a uma narrativa sem tempo certo para encerrar-se, fui aprendendo que só saberia narrá-las no futuro, e com relativa fidelidade, se me convertesse na escritora que, a pretexto de falar de mim, estivesse, de verdade falando da coletividade, que é a única narrativa que merece subsistir.

Nélida Piñon
http://www.youtube.com/watch?v=BoE7JoFNdTo&feature=related

domingo, 15 de janeiro de 2012

Vitória


-Vitória!...Vitória!...
Na minha frente resplendia o espectáculo magnífico do Porco, transformado pela indústria do homem em pequenas obras-primas para o gosto e para os olhos, com cambiantes de cor que iam do  loiro das alheiras de Bragança às cacholeiras de Elvas, negras como a tinta dos chocos, passando pelas morcelas, em gancho, da Guarda. Sobre um chão de presuntos de Chaves, a que o colorau emprestava o tom ferrugento da areia, erguia-se um palanque de farinheiras em festa, à sombra das quais se repimpavam os paios de lombo, de coletes desabotoados, enquanto lá de cima, das prateleiras de vidro, pendiam linguiças como cabelos gordos duma bruxa ruiva e, aqui e ali, tal salpicadelas dum pincel de artista comilão, se reuniam em piquenique os salpicões de Portalegre, as placas de toucinho fumado com veios de pedra polida, as mortadelas, os painhos avinhados, os chouriços de sangue, os torresmos de Montijo, os rojões de Mirandela...
Era a apoteose ao Porco em toda a pujança duma  indigestão fabulosa numa barriga transparente!
Confesso que me apeteceu, pelo menos, arrotar de aplauso.
Em vez disso, porém - caminhos complicados os do homem! -, aquela paisagem grosseira inventou-me uma melodia delicada e espiritual de violino longo. E tive saudades.
Sim. Tive saudades absurdas da paz autêntica que nunca gozei, eu que pertenço a uma geração que já gramou - repito: que positivamente já gramou! - duas guerras universais com as respectivas consequências do ódio estrangulador de todas as pombas.
Senti saudades, não do passado, mas dum futuro qualquer, tão distante, tão lá no fundo, tão sonho, tecido apenas de pequenas coisas doces, num mundo menos pesado de cadáveres, desdenhosos de outro heroísmo que não fosse o de vivermos a teima dos dias persistentes e, sobretudo, alheio à horrível morte colectiva a substituir a boa, a individual, a sagrada morte de cada um.
-Vitória!...Vitória!...
...Assim cogitei toda a tarde, no oitavo dia do mês de Maio de mil novecentos e quarenta e cinco, data em que findou a segunda grande guerra mundial no meio de vivas e de bandeiras de triunfo, e em que tentei, em vão, resignar-me ao mundo dos ouros e às montras de enchidos de porco - sem estrelas reflectidas nos vidros.

José Gomes Ferreira
http://www.youtube.com/watch?v=uB14U2zNRjs

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Borda d'Água


Em janeiro, conta os dias que faltam
para o fim do inverno. Em fevereiro,
goza o carnaval. Em março, não te
esqueças da quaresma. Em abril, solta

o sol da primavera. Em maio,  as noites
são mais quentes. Em junho, atravessa
o solstício. Em julho, apanha os frutos
do verão. Em agosto, ouve as cigarras.

Em setembro não te importes com o
vento. Em outubro apanha as folhas do
chão. Em novembro não saias à noite.

E em dezembro, quando o ano acabar,
lembra-te que não fizeste nada disto,
e se fizeste terás de tudo recomeçar.

Nuno Júdice
http://www.youtube.com/watch?v=2q593KsUFC4&feature=related

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Viagens na minha terra


Às vezes passo horas inteiras
Olhos fixos nestas braseiras,
Sonhando o tempo que lá vai;
E jornadeio em fantasia
Essas jornadas que eu fazia
Ao velho Douro, mais meu Pai.

Que pitoresca era a jornada!
Logo, ao subir da madrugada,
Prontos os dois para partir:
- Adeus! - adeus é curta a ausência,
Adeus! - rodava a diligência
Com campainhas a tinir!

E, dia e noite, aurora a aurora,
Por essa doida terra fora,
Cheia de Cor, de Luz, de Som,
Habituado à minha alcova
Em tudo eu via coisa nova,
Que bom era, meu Deus! que bom!

E a mala-posta ia indo, ia indo,
O luar, cada vez mais lindo,
Caía em lágrimas - e, enfim,
Tão pontual às onze e meia,
Entrava, soberba, na aldeia
Cheia de guizos, tlim, tlim, tlim!

Lá vejo ainda a nossa Casa
Toda de lume, cor de brasa,
Altiva, entre árvores, tão só!
Lá se abrem os portões gradeados,
Lá vêm com velas os criados,
Lá vem sorrindo a minha Avó.

E então, Jesus! quantos abraços!
Qu' é dos teus olhos, dos teus braços,
Valha-me Deus! como ele vem!
E admirada, com as mãos juntas,
Toda me enchia de perguntas,
Como se eu viesse de Belém!

António Nobre
http://www.youtube.com/watch?v=4BHdvDYyCVA

domingo, 18 de dezembro de 2011

O Guardador de Rebanhos


Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.

Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se longe.

Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas(...)

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez com que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as(...)

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

Fernando Pessoa
http://www.youtube.com/watch?v=gWI1gs0dJYk

domingo, 11 de dezembro de 2011

O meu afilhado grande


Sou padrinho do meu sobrinho mais velho, o Hugo, que vai fazer 22 anos e é a prova andante e falante de que estou velho.
O meu afilhado grande está na faculdade, namora e conduz, vota, decide cada coisa na sua vida. Claro que, por maior que seja e mais barba o aflija, nós temos dele uma eterna versão pequena no coração, uma versão quase bebé que nos impele para pensarmos que é ainda o nosso menino desprotegido por quem temos de pensar, por quem temos de decidir.
Até certo ponto, ia ser tão bom que pudéssemos ainda mandar nele, para o obrigarmos a vir aos nossos jantares quando quiséssemos, para o obrigarmos a estar sempre presente para cura das nossas mais absolutas saudades, para o vermos sempre crescer, como crescer mais, porque continuamente nos maravilham as crianças da nossa família. E isto sou eu, tio casmurro, a acriançar por defeito o meu afilhado grande, mais alto do que eu, que já está na faculdade, namora e vota e decide cada coisa na sua vida a autonomizar-se mais e mais da nossa. Oh, destino cruel, porque se autonomizam de nós os nossos meninos.
Tenho muito orgulho no meu afilhado grande. Tenho orgulho que seja também ele um coração amanteigado que guardará algures a impressão dos abraços, aquele sorriso muito entregue, a malandrice das palavras feias dos quatro ou cinco anos. Algures fica esse reduto simples de sensibilidade, que nos enternecia tanto quanto nos fazia rir.

Walter Hugo Mãe
http://www.youtube.com/watch?v=XsgZZ2-D6g8&feature=related

domingo, 4 de dezembro de 2011

Estória para a Rita


Foi quando lhe ocorreu: sua filha só podia ser salva por uma história! E logo ali lhe inventou uma, assim:
Era uma vez uma menina que pediu ao pai que fosse apanhar a lua para ela. O pai meteu-se num barco e remou para longe. Quando chegou à dobra do horizonte pôs-se em bicos de sonhos para alcançar as alturas. Segurou o astro com as duas mãos, com mil cuidados. O planeta era leve como uma baloa.
Quando ele puxou para arrancar aquele fruto do céu se escutou um rebentamundo. A lua se cintilhaçou em mil estrelinhações. O mar se encrispou, o barco se afundou, engolido num abismo. A praia se cobriu de prata, flocos de luar cobriram o areal. A menina se pôs a andar ao contrário de todas as direcções, para lá e para além, recolhendo os pedaços lunares. Olhou o horizonte e chamou:
- Pai!
Então, se abriu uma fenda funda, a ferida de nascença da própria terra. Dos lábios dessa cicatriz se derramava sangue. A água sangrava? O sangue se aguava? E foi assim. Essa foi uma vez.
Chegado a este ponto, o pai perdeu voz e se calou. A história tinha perdido fio e meada dentro da sua cabeça. Ou seria o frio da água já cobrindo os pés dele, as pernas de sua filha? E ele em desespero:
- Agora, é que nunca!
A menina, nesse repente, se ergueu  e avançou por dentro das ondas. O pai a seguiu, temedroso. Viu a filha apontar o mar. Então ele vislumbrou, em toda extensão do oceano, uma fenda profunda. O pai se espantou com aquela inesperada fractura, espelho fantástico da história que ele acabara de inventar. Um medo fundo lhe estranhou as entranhas. Seria naquele abismo que eles ambos se escoariam?
- Filha, venha para trás. Se atrase, filha, por favor...
Ao invés de recuar a menina se adentrou mais no mar. Depois parou e passou a mão pela água. A ferida líquida se fechou, instantânea. e o mar se refez, um. A menina voltou atrás, pegou na mão do pai e o conduziu de rumo a casa. No cimo a lua se recompunha.
- Viu, pai? Eu acabei a sua história!
E os dois, iluaminados, se extinguiram no quarto de onde nunca haviam saído.

Mia Couto
http://www.youtube.com/watch?v=t6oWo0uGDDI