segunda-feira, 12 de março de 2012

Linha do Estoril


Fui ter com o mar. Das vezes que cedo ao impulso e satisfaço saudades do mar a sério, o das marés vivas que afrontam as praias desertas, sinto, diante da paisagem turvada e violenta, revigorar-se todo o meu ser como se o banho de maresia fosse o grande tónico para prolongar a vida.
Num paredão em grandes letras: AMAR O MAR. É um programa, uma interpelação, um desafio. Às vezes os grafitis acertam no que enunciam de forma ostensiva, irrecusável. Lembro-me de ter apontado um tão afirmativo que não admitia contestação: AMAR É NÃO TER MEDO. Li-o em Coimbra, há anos, perto do Jardim Botânico.
Apeteceu-me, agora, associar os dois, decerto escritos em tempos diferentes, por pessoas diferentes, pensando coisas diferentes. Aí vai: AMAR O MAR É NÃO TER MEDO. O que quer que isto queira dizer, parece, à primeira leitura, tão óbvio que não merece mais comentários. As vagas incessantes, as ondas a explodirem, a vibração do ar, tudo nos arrasta para a ideia de que a terra é um frágil tapete, um litoral apetecível à mercê da conquista das águas. Elas irão recuperar o que já lhes pertenceu. Dela ascendemos, genuína mãe da natureza terrestre. O mar é a expressão mais cabal da eternidade. Amá-lo é não ter medo das forças contraditórias da vida. Em última análise, não ter medo da morte.

António Torrado
http://www.youtube.com/watch?v=stcQlmM941k

domingo, 4 de março de 2012

Em Drave, 1997


Sobre a respiração da terra, ao longe,
o vulto negro, dobrado, de mulher.
Traz às costas todas as casas da aldeia
e empurra sozinha a sombra de um arado.
O ritmo é cadenciado, lento, monótono,
de imprevisíveis paragens nos portais do tempo.
Toda a terra é sua e suor
toda ela é terra, marcada,
abanada por secas e temporais.
Terra há muito sem primavera
desprovida de cio e parto de flores.
Seus canteiros de xaile preto têm raízes apenas.
Terra sem verões, também,
seca, morna, terra pálida
onde pássaros se ausentam da brisa fresca matinal.
Seu corpo é o inverno carregado de vendavais,
saias de nuvens pretas roçando a lama
como uma árvore embalada de outono
de seiva branda e espargindo lume.

Maria José Castro
http://www.youtube.com/watch?v=L9RifuYKvFo

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Diário


Coimbra, 15 de Agosto de 1993 - Romaria da Senhora da Azinheira em S. Martinho. O que eu dava para ser hoje um dos romeiros! Mas tive de me contentar com a recordação da imagem da Santa a oscilar perigosamente no andor de três andares, de meu Pai, seu mordomo jurado, aflito a dar de beber aos homens dos varais, alagados de suor, e a pedir-lhes pelas benditas almas que não abanassem tanto o palanque, da procissão, como um rio caudaloso e moroso, a subir a serra, toda ela a faiscar à torreira da mica das pedreiras descarnadas, nos metais polidos da música, nas lantejoulas dos saiais e pedras falsas dos resplendores, e de mim, vestido de S. José, a marcar o sítio onde caíam as canas dos foguetes que iam estoirando no céu.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

E por vezes


E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos. E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto dos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos

David Mourão-Ferreira
http://www.youtube.com/watch?v=ZqEryZkJtNo

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Quadras aos noivos


Vinde com Deus, senhores noivos,
Façam favor de aquedar
Em primeiro de tudo
Os parabéns vos quero dar.

Apare, senhora noiva,
Apare no seu manto
São cravos e rosas
Vindas do Espírito Santo.

Apare, senhor noivo,
Apare no seu chapéu
São cravos e rosas
Caídas do céu.

Estas flores que eu deito
São brancas e rajadas
É para que estes senhores digam
Que elas são bem botadas.

Eu deito flores aos noivos
Com cinco sentidos
Também trago os meus
pelo mundo repartidos.

Desejosa estava eu
De chegar este dia
Para dar os parabéns aos noivos
E a toda a companhia.

Se à noiva dei um abraço
Ao noivo dou um aperto de mão
Agora também lhe quero dizer
Qual a sua obrigação.

Vim pôr flores aos noivos
E a toda a companhia
Deus queira que de hoje a um ano
Tenham a mesma alegria.


Da tradição oral, lugar de Mataduços, Aveiro
http://www.youtube.com/watch?v=Aq1N5C08rYA

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Montedemo


Era à boca dos vales pomareiros que se alteava o monte. Um bico enorme, arquitectura de rochedos e cavernas, com vertentes perigosas como pântanos, assim tão recobertas daquela pasta negra e borbulhante, feita de folhas, bichos, fungos mortos: o caldo azedo e fértil da decomposição.
Ali pegava toda a espécie vegetal, semente que viesse pelo ar, ou no pêlo da raposa, ou no dorso da cobra, tronquinho disparado por criança, tudo deitava ao chão raiz para se manter e ao céu frutos e flores, sua forma de amar. Urzes e madressilvas, medronheiros, carvalhinha, eucalipto, rosas bravas, laranjeiras e silvas, figueiras do diabo e outras tantas misturas de flora da montanha e flora do deserto entrançadas, em luta contra a pedra, devorando aquele húmus e em húmus se tornando. Num frenesim de seiva e de sentidos, fome tal que em cada primavera se percebia o monte inchar e encolher, como ofegante, como homem desvairado de desejo. E se ouviam gemidos, um ranger e um muito sofreado soluçar, dir-se-ia que às plantas lhes custava receber tanta vida em tão esguias entranhas.
O povo lhe chamara Montedemo e ainda hoje se conta que lá iam, cobertos pela noite e embuçados, os pares de noivos prestes a casar. Contra as leis da igreja, contra os ditames da prudência iam. E encostavam à terra a boca e a barriga, pedindo para os corpos prazer e harmonia e para o sangue filhos sãos e machos.
Ao segundo domingo de Fevereiro, quando andam pelo ar as grandes liberdades, os vapores e as zangas, sinais de carnaval; cada qual dando ouvidos ao mais fundo de si, ao que de lá de dentro lhe pediram para ser,  palhaço ou bailarina ou gordo endinheirado(...),  ora aí vão com cestas as mulheres, com garrafões os homens, com pressa a juventude.
Pela berma da estrada, matando uma saudade tenaz e inconfessa de chapinhar na lama; ou sobre o lombo de pequenas camionetas; recostados alguns no forro de peluche dos automóveis ganhos a penar no estrangeiro. Correm como se o monte os atraísse, como se houvesse entre ele e a carne humana o mesmo obstinado e velho amor com que os ímanes apelam aos metais. Por isso vão, corados do enleio ou da frescura daqueles ares de inverno, onde esvoaçam já veludos fecundados, mimosas e giestas de amarelos pagãos.
E instalam-se, cercando Montedemo. Com fogueiras o cercam, com aromas, com fumos de alecrim, salva, resina. Engrossando o novelo do calor com azuladas folhas de eucalipto, estralejantes agulhas de pinheiro. Todo o dia se come e se bebe, e se dança, que sempre vem a banda sem que ninguém lhe pague, mais um que toca harmónica, e um outro acordeão. E se volta a comer e a beber e a dançar até que cai a hora em que se pode olhar de frente para o sol, a tarde fica espessa e fria como um túmulo, os braseiros hesitam e adormecem. Esteve assim Montedemo rodeado de corpos que festejam nem eles sabem o quê: o respirar.

Hélia Correia
http://www.youtube.com/watch?v=ooi7eomsTuc&feature=related

sábado, 28 de janeiro de 2012

Em Drave, 2007


Da chegada a Drave recorda sobretudo o eco dos balidos ressoando como gritos das centenas de cabras, que pareciam ter tomado de assalto a aldeia, que se estendia pela colina, procurando desesperadamente comida dentro e fora das casas em ruínas, por todos os recantos, equilibrando-se em cima dos pedregulhos, esticando-se, pulando e torcendo-se dispostas a tudo para alcançarem uma pontinha de erva tenra. Por outro lado a água corria até ao fundo do vale, local de confluência de três ribeiros, formando pequenos lagos. Entretanto, com surpresa, reparou na presença de alguns jovens, em fato de banho, à volta do rio. (Por momentos, chegou a pensar que se encontrava num local frequentado por veraneantes de praias fluviais.) Mas descobriram uma zona do rio onde não se encontrava ninguém com área e profundidade adequada para tomar banho. Várias pedras enormes situadas no leito do rio estrangulavam e impediam a passagem livre da água, que se precipitava formando um cascata. É claro que a Margarida entrou logo na água(...)
Após o banho, resolveram ir explorar a aldeia. Entretanto, de repente e como por encanto, desapareceram todas as cabras.  Drave que actualmente não tem moradores é constituída por dois núcleos habitacionais, com casas de pedra e telhado de xisto que se dispõem pela colina acima. A capela muito simples e pequena sobressai do conjunto porque se encontra caiada de branco. Caminharam através das estreitas e sinuosas ruas observando o que resta das casas. Aqui e ali, quando ainda havia porta, abriam-na e o cheiro quente a madeira permanecia a lembrar os tempos antigos.