terça-feira, 9 de janeiro de 2018

A minha infância


A minha infância
cheira a soalho esfregado a piaçaba
aos chocolates do meu pai aos Domingos
à camisa de noite de flanela
da minha mãe

Ao fogão a carvão
à máquina a petróleo
ao zinco da bacia de banho

Soa a janelas de guilhotina
a desvendar meia rua
surgia sempre o telhado
sustentáculo da mansarda
obstáculo da perspectiva

Nele a chuva acontecia
aspergindo ocres mais vivos
empapando ervas esquecidas
cantando com as telhas liquidamente
percutindo folhetas e caleiras
criando manchas tão incoerentes nas paredes
de onde podia emergir qualquer objecto

E havia a Dona Laura
senhora distinta
e sua criada Rosa
que ao nosso menor salto
lesta vinha avisar
que estavam lá em baixo
as pratas a abanar no guarda-louça

O caruncho repicava nas frinchas
alongava as pernas
a casa envelhecia

A minha mãe fazia-me as tranças
antes de ir para a escola
e dizia-me muitas vezes

Não olhes para os rapazes
que é feio.

Inês Lourenço

https://www.youtube.com/watch?v=PjIwhgj-VQY

domingo, 31 de dezembro de 2017

Cantarolar pela rua

                                 

                                    Cantarolar pela rua   Assobiar
                                    de mãos nos bolsos como quem tem dez anos ou cinquenta
                                    Ter aberto um jornal que não se lê                       
                                    Interromper sem razão uma conversa
                                    Voltar ou não voltar e afinal voltar               
                                    Contagiar desta alegria toda até então submersa
                                    os que não sabem nada disto ou disto riem
                                    e só de ver sorrir assim também sorriem
                                    confusamente sem saber porquê

                                    isto é estar vivo é bom e não se explica
                                    nem inventa


                                    Mário Dionísio
                                    http://www.centromariodionisio.org/a_pintura_mariodionisio.php

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Os animais carnívoros


Dava pelo nome muito estrangeiro de Amor, era preciso chamá-lo sem voz - difundia uma colorida multiplicação de mãos, e aparecia depois todo nu escutando-se a si mesmo, e fazia de estátua durante um parque inteiro, de repente voltava-se e acontecera um crime, os jornais diziam, ele vinha em estado completo de fotografia embriagada, descobria-se sangue, a vítima caminhava com uma pêra na mão, a boca estava impressa na doçura intransponível da pêra, e depois já se não sabia o que fazer, ele era belo muito, daquela espécie de beleza repentina e urgente, inspirava a mais terrível acção do louvor, mas vinha comer às nossas mãos, e bastava que tivéssemos muito silêncio para isso, e então os dias cruzavam-se uns pelos outros e no meio habitava uma montanha intensa, e mais tarde às noites trocavam-se e no meio o que existia agora era uma plantação de espelhos, o Amor aparecia e desaparecia em todos eles, e tínhamos de ficar imóveis e sem compreender, porque ele era uma criança assassina e andava pela terra com as suas camisas brancas abertas, as suas camisas negras e vermelhas todas desabotoadas.

Herberto Helder
(pintura de Mário Cesariny de Vasconcelos)
https://www.youtube.com/watch?v=1slAcb1Wikk

sábado, 2 de dezembro de 2017

The Sixties



Na ressaca da visita à exposição “A Revista Aspen, 1965-1971”, na Culturgest:

Minimal, pós-minimal, conceptual, pós-conceptual, psicadelismo and so on. Que sei eu? Quase nada. O que aprendi? Muito pouco. “O que faz falta é agitar a malta o que faz falta…” (José Afonso, 1972)

E em Portugal como foram os anos 60?

Entram guizos chocas e capotes
e mantilhas pretas
entram espadas chifres e derrotes
e alguns poetas
entram bravos cravos e dichotes
porque tudo o mais
são tretas.


Fernando Tordo / Ary dos Santos, 1973

Stop! Essa canção não é da década de 60. Tão bonita que apetece cantar mas como diz o poema de Miguel Torga:

“Apetece cantar, mas ninguém canta.
Apetece chorar, mas ninguém chora.
Um fantasma levanta
A mão do medo sobre a nossa hora.”


Na verdade, a censura imposta pelo regime político pretendia manter-nos isolados, parados no tempo e, por isso, tentava impedir a divulgação de quase tudo o que se passava no estrangeiro, para nos proteger de más influências que pudessem gerar contestação.
Até aos anos 60, as artes e as letras em Portugal tinham a língua e a cultura francesas como referência. A partir dessa data assiste-se a uma mudança de paradigma. A cultura anglo-saxónica insinua-se e começa a ser muito apreciada e imitada pelos jovens. 
No campo da música, em Portugal, veja-se o caso do conjunto musical “Os Sheiks” que, além de interpretarem êxitos da música anglo-saxónica, cantavam a chamada música yé-yé. Estamos nos primórdios do rock português. O Quarteto 1111, formado por José Cid, era um projecto bastante arrojado e ficou célebre principalmente pela canção que começava: 

“ Depois de Álcácer-Quibir
El rei D. Sebastião
(oh, oh, oh…)

Perdeu-se num labirinto
Com seu cavalo real
(oh, oh, oh...)


De referir que o Festival de Vilar de Mouros, em 1971, o nosso Woodstock, contou com a participação de grandes nomes da música internacional, como Elton John, além de bandas e cantores nacionais, o que atraiu um grande número de jovens estrangeiros, muitos deles “hippies”. O facto de Vilar de Mouros se situar num local de difícil acesso, longe dos grandes centros urbanos, no meio da natureza, uma espécie de paraíso, acabou por contribuir para o ambiente especial que se criou, o encantamento de que falam todos os portugueses que estiveram presentes, porque nem em sonhos acreditavam que tal pudesse acontecer no nosso país! 

Eles não sabem que o sonho
É uma constante da vida
Tão concreta e definida
Como outra coisa qualquer 

 Manuel Freire / António Gedeão, 1969                                                                               (continua)

HN, 30/11/2017
(em homenagem ao Fernando a quem, por motivos óbvios, pertencia o cartaz acima reproduzido)
https://www.youtube.com/watch?v=y1tydtIldYU

domingo, 26 de novembro de 2017

Nápoles






Fui tomada por uma exaustão que, por mais que tentasse repousar, não queria passar. Pela primeira vez fiz gazeta. Faltei à escola, creio, quinze dias, e nem a António disse que já não conseguia estudar, que queria desistir. Saía à hora habitual, passeava toda a manhã a pé pela cidade. Aprendi muito sobre Nápoles, nesse período. Remexia os livros usados das bancas do mercado de Port'Alba, assimilava títulos sem querer, nomes de autores, prosseguia em direcção a Toledo e ao mar. Ou subia ao Vomero pela Via Salvator Rosa, chegava a San Martino, descia pelo Petraio. Ou então explorava a Doganella, ia até ao cemitério, cirandava pelas alamedas silenciosas, lia os nomes dos mortos. Por vezes, jovens vadios, velhos patetas, até senhores distintos de meia-idade, iam-me no encalço, fazendo-me propostas obscenas. Apressava o passo de olhos baixos, fugia sentindo o perigo, mas não desistia. Pelo contrário, quanto mais fazia gazeta à escola mais aquelas manhãs de vadiagem alargavam o rasgão na rede de obrigações escolares que me aprisionava desde os seis anos de idade. Na devida hora regressava a casa e ninguém suspeitava de que eu, e logo eu, não tina ido à escola.

Elena Ferrante
https://www.youtube.com/watch?v=X24wnVcBMLg


domingo, 19 de novembro de 2017

A flor



Acerca do Vesúvio poderíamos dizer alguma coisa. Ficou
no seu cume uma nuvem e o vento nem sequer a afasta. Talvez seja
uma recordação que veio ter connosco. Caminhemos
nessa direcção, porque é devagar que os nossos passos se dirigem
para o tempo. A vegetação procura o interior das cinzas.
O mar fica próximo; existe também um rio. Ao longe principiaram a cultivar
os campos. Outrora, ao descer da lava, julgo que todos estavam
adormecidos. Há quem diga que foi o sono que a trouxe,
aquecida por tantos corpos ali deitados, vasos da sua própria
nudez agora sujeita a um calor desconhecido. Que sonhos
podem existir aqui? Ficaram perdidos, dispersos pelos caminhos
sem saída de quem desperta. As mãos tocam
as chamas nelas ocultas, as fendas que se abrem mais ao encontrarmos
estas sementes iluminadas. Sempre foi igual a sombra
que as colunas deixam umas nas outras. Passamos entre elas. Talvez
uma flor calcinada conserve ainda o seu perfume.

Fernando Guimarães
https://www.youtube.com/watch?v=v9E9fv6zr18

sábado, 4 de novembro de 2017

Tentando compreender Gordon Matta-Clark


Como é triste…
Este bairro agoniza
Ruas quase desertas
Casas abandonadas
Lixo, muito lixo
Ruas esburacadas e negras.
Pobres habitantes
Empurrados
Para a periferia!
Outros virão
Instalar-se aqui
Nos novíssimos prédios
Em construção.
(Isto valoriza a zona.
E é bom para o turismo!)

Instintivamente
Apanho um pedaço de papel
Miro-o, remiro-o
Amarroto-o com as duas mãos
Aliso-o vagarosamente
Com a tesoura faço uns cortes
Um picotado
E volto a amarrotá-lo
Levo um pedacinho à boca
E mastigo-o
Devagar
A saborear
E eureka, entendi!
Ok, Gordon Matta-Clark,
Tens toda a razão,
Os tempos mudaram,
A arte já não cabe
No aconchego dos museus.
Ficaram célebres
As tuas intervenções
Nas casas abandonadas
Mostrando novas formas de olhar
E agitando as consciências…
Ok, Gordon Matta-Clark,
Mais uma vez concordo contigo.
A arte é frugal
Total
Para ser comida
E vivida
Mortal
Como todos nós.