domingo, 10 de fevereiro de 2019

"Amigos"


Recomendo vivamente a leitura da crónica desta semana
(7 Fev.2019) de Ricardo Araújo Pereira na  revista "Visão".
O humorista confessa que ainda vive como se estivéssemos
em 2003, ou seja antes do "feicebuque". Por exemplo,
quando um amigo faz anos dá-lhe os parabéns com a boca... 
Além disso só tem uns dez amigos, em vez de 5000.
E às vezes discute com eles, mas não em público,
com desconhecidos a ver e a comentar.
Enfim, o que pensaria disto tudo Camilo Castelo
Branco que há mais de 100 anos escreveu este poema?

 Amigos cento e dez, e talvez mais, 
 Eu já contei. Vaidades que eu sentia! 
Supus que sobre a terra não havia 
Mais ditoso mortal entre os mortais. 

Amigos cento e dez, tão serviçais, 
Tão zelosos das leis da cortesia, 
Que eu, já farto de os ver, me escapulia 
Às suas curvaturas vertebrais.

 Um dia adoeci profundamente. 
Ceguei. Dos cento e dez houve um somente 
Que não desfez os laços quase rotos.

 - Que vamos nós (diziam) lá fazer? 
Se ele está cego, não nos pode ver… 
Que cento e nove impávidos marotos!

domingo, 3 de fevereiro de 2019

As quatro estações

       
"O Outono" foi pintado por Giuseppe Arcimboldo (Milão, 1527 - 1593) que viveu vários anos em Praga. As suas obras mais conhecidas são "As quatro estações", onde usou pela primeira vez imagens da natureza, tais como frutos, verduras e flores, para compor rostos humanos.

           Vem o Inverno com o seu carrinho do frio
           a apertar nas curvas; a Primavera e os seus 
           paroxismos que não duram muito, o Verão
           e os seus langores de ainda menos; e por fim,
           mas também pode ser no meio ou no princípio,
           lá vens tu, que não falhas nunca, melancólico
           e misericordioso Outono, a estenderes-me a taça
           de vinho puro que eu bebo lenta e gravemente
           com aquela lentidão, aquela gravidade característica 
           dos que não têm religião nenhuma, ou têm apenas essa.

           Rui Caeiro 
           (pintura de Arcimboldo)
           https://www.youtube.com/watch?v=Mu2tlD1xy5Q

domingo, 27 de janeiro de 2019

Lei sálica

     
Está representada uma mulher gordinha, de lado para nós,  talvez com 35 anos, de olhos grandes e lábios pintados. Traz um vestido decotado com  pregas à frente (será um avental?) e mais justo atrás , mas calça uma espécie de pantufas desirmanadas. Na cabeça traz uma touca que lembra as usadas pelas mulheres de épocas passadas. Carrega um grande peso às costas aqui representado por um pedaço de terra com árvores.

             As mulheres da família sempre 
          tiveram um jeito quase póstumo
          de existir: guardar o lume
          em silêncio, comer depois de
          servir os outros, morrer primeiro

          Saíam à hora de ponta do destino
          para lerem os caminhos perdidos
          e coleccionavam a abdicação
          em caixinhas de folha, entre bilhetes
          caducados ou dentes de infâncias alheias.

          Esperavam a vida toda por uma vida
          próxima, de alma presa a alfinetes
          no vestido preferido para o enterro,
          os passos medidos nas suas varandas 
          a dar para o fim do mundo.

          Retomo-lhes às vezes os gestos
          neste meu exílio inventado,
          mas acaba aqui: vou encher de corpo
          a sombra, mesmo que nem tempo
          me reste já para a pesar.

          Inês Dias
          (pintura de Armanda Passos)
          https://www.youtube.com/watch?v=o0ZLw3aSsyg

domingo, 20 de janeiro de 2019

Lisboa (1)


              por trás dos muros da cidade
           no seu coração profundo de alicerces
           de argilas e de sísmicos arroios - cresce uma voz
           que sobe e fende a brandura das casas

            da escrita dos inumeráveis povos quase
            nada resta - deitas-te exausto na lâmina da lua
            sem saberes que o tejo te corrói e te suprime
            de todas as idades da europa

            mais além - para os lados do corpo - permanece
            a tosse dos cacilheiros os olhos revirados
            dos mendigos - o tecto onde um navio
            nos separa de um vácuo alimentado a soro

            plátanos brancos recortam-se luminescentes no olhar
            de quem nos olha contra um céu desesperado - jardim
            de íris açucenas palmeiras cobertas de rocio e
            a ponte que nos leva aos campos do sul - lisboa

            lugar derradeiro do riso
            que já não te pode salvar do cemitério dos prazeres

            e morres
            carregado de tristezas e de mistérios - morres 
            algures
            sentado numa praceta de bairro - o olhar fixo
            no inferno marítimo das aves

            Al Berto
            (pintura de Cândido Costa Pinto)
            https://www.youtube.com/watch?v=AMJ3YivXWRY

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

As escavações

           Esta cidade é aquela que ficou
         dentro de nós. Depois escavaremos
         porque outras mais existem. São aquelas
         invisíveis agora, mas que havia

         ao longo das camadas sobrepostas
         pelo tempo ou talvez só pela cinza
         ardente, pelos fetos destas chamas
         mais altas, pela febre em que perdemos

         a memória. De novo, ao procurá-las
         talvez se encontrem próximas de um rio
         que as venha reflectir. Serão apenas

         não os jardins, as ruas, estas casas
         mas a pureza extrema em que se afastam
         de nós. Iguais ao nada. Sem imagens.

         Fernando Guimarães
         (street art - Whils/Pichel Pancho)
         https://www.youtube.com/watch?v=pnLaYkogqtU

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

E M Melo e Castro


INFOPOEMA



POESIA VISUAL
todos os poemas são visuais

porque são para ser lidos

com os olhos que veem

por fora as letras e os espaços

mas não há nada de novo

em tudo o que está escrito

é só o alfabeto repetido

por ordens diferentes

letras palavras formas

tão ocas como as nozes

recortadas em curvas e lóbulos

do cérebro vegetal : nozes

os olhos é que veem nas letras

e nas suas combinações

fantásticas referências

vozes sobretudo da ausência

que é a imagem cheia

que a escrita inflama

até ao fogo dos sentidos

e que os escritos reclamam

para se chamarem o que são

ilusões fechadas para

os olhos abertos verem





                      https://www.youtube.com/watch?v=y1l_PmLPqQE

segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Sísifo

                     
                         Recomeça...
                         Se puderes,
                         Sem angústia e sem pressa.
                         E os passos que deres,
                         Nesse caminho duro
                         Do futuro,
                         Dá-os em liberdade.
                         Enquanto não alcances
                         Não descanses.
                         De nenhum fruto queiras só metade.

                         E, nunca saciado,
                         Vai colhendo
                         Ilusões sucessivas no pomar.
                         Sempre a sonhar
                         E vendo,
                         Acordado,
                         O logro da aventura.
                         És homem,não te esqueças!
                         Só é tua a loucura
                         Onde, com lucidez, te reconheças.

                         Miguel Torga
                         (arte de Zhang-Kechun)