domingo, 17 de janeiro de 2021

Auto-retrato


Espáduas brancas palpitantes:
asas no exílio dum corpo.
Os braços calhas cintilantes
para o comboio da alma.
E os olhos emigrantes
no navio da pálpebra
encalhado em renúncia ou cobardia.
Por vezes fêmea. Por vezes monja.
Conforme a noite. Conforme o dia.
Molusco. Esponja
embebida num filtro de magia.
Aranha de ouro
presa na teia dos seus ardis.
E aos pés um coração de louça
quebrado em jogos infantis.

Natália Correia
Pintura de Artur Bual
https://www.youtube.com/watch?v=yPKCNHOgXTg

Poema de Natália Correia em resposta a um deputado do CDS, que se opunha à despenalização do aborto, com o argumento de que o coito era para ter filhos.

Já que o coito - diz Morgado -
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino;
e cada vez que o varão
sexual petisco manduca,
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.
Sendo pai só de um rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou - parca ração! -
uma vez. E se a função
faz o órgão - diz o ditado -
consumada essa excepção,
ficou capado o Morgado.

(Natália Correia - 3 de Abril de 1982 )

Voamos


Voamos a lua,
menstruadas

Os homens gritam:
- são as bruxas

As mulheres pensam:
- são os anjos

As crianças dizem:
- são as fadas


Maria Teresa Horta
Pintura de Picasso

sábado, 9 de janeiro de 2021

Os animais doidos de cólera


O que vou contar, ainda não aconteceu. Mas acontecerá, quando não sei, talvez daqui por quinhentos ou mil anos, precisamente (arrisco a profecia) em 2968. Qual venha ser o primeiro animal a endoidecer de cólera, não o diria mesmo que soubesse, porque o mais certo era acabarem-lhe já com a espécie, na mira de evitar a catástrofe.
Em todo o caso, alguma coisa me diz que a primeira rebelião virá de um animal pacífico. Talvez o cão, talvez a calhandra. Ou a rola, hoje tão modesta e conformada. Não sei, não sei. Agora mesmo (vá lá explicar porque) tive a certeza de que será o potro. Vi-o no meio de um prado, com erva até os joelhos, o sol a acender-lhe fogachos no pelo sedoso - e de repente erguer-se nas patas traseiras, esgrimir os cascos, de crina revolta e beiços arreganhados de furor. E se aqui deixo, afinal, esta revelação, é só porque sei que, no fundo, ninguém vai acreditar-me.
Será o primeiro sinal. O potro sairá do prado verde e meterá as estradas dos homens. Por onde passa, levanta o motim, desperta a cólera, bate com as patas nos troncos das árvores e nas tocas sombrias. Ergue a cabeça transfigurada para as nuvens e chama as aves do céu. Por todo o mundo começa a mover-se o grande exército dos animais.
Ao princípio, os homens ficam surpreendidos. Depois, o interesse científico leva-os a sobrevoar de helicóptero as manadas e rebanhos, os insetos alados e os bandos de pássaros, os intermináveis cortejos de lagartas e formigas. Tiram fotografias e escrevem relatórios e reportagens. Colhem aqui e além um animal crispado, estudam-lhe o comportamento, vivissectam e dissecam - e nada encontram, porque não há vírus da ira nem micróbio da fúria.
Quando os animais se tornam incômodos, os homens põem em uso a panóplia doméstica dos pequenos conflitos: armas de caça, inseticidas, redes, venenos, armadilhas. Mas os animais são inúmeros. Surgem de todos os lados e cercam as cidades… 

José Saramago (texto com supressões)
Pintura de Júlio Pomar

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Renova-te


Renova-te.

Renasce em ti mesmo.

Multiplica os teus olhos, para verem mais.

Multiplica os teus braços para semeares tudo.

Destrói os olhos que tiverem visto.

Cria outros, para as visões novas.

Destrói os braços que tiverem semeado,

Para se esquecerem de colher.

Sê sempre o mesmo.

Sempre outro.

Mas sempre alto.

Sempre longe.

E dentro de tudo.


Cecília Meireles

Pintura da Gabriele Munster

https://www.youtube.com/watch?v=oHS6F-84gf0

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Apesar das ruínas

Apesar das ruínas e da morte,

Onde sempre acabou cada ilusão,

A força dos meus sonhos é tão forte,

Que de tudo renasce a exaltação

E nunca as minhas mãos ficam vazias.


Sophia de Mello Breyner Andresen
Pintura de João Queiroz

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Ao Eduardo Lourenço, na Flor da sua Idade


Era bonita mas tão provinciana
a cidade. Dos seus muros pasmados
a luz fina caía preguiçosa
nas areias do rio. Mas o resto 
era vulgaridade e sonolência.
Só as árvores não era vulgares:
de tão formosas tornavam o céu
de cristal, como se o verão fora
imortal entre plátanos e choupos.
Ali nos encontrámos certo dia,
éramos jovens e mais jovem que nós
era a poesia que nos acompanhava.
Hoderlin, keats, Pessanha e o Pessoa
eram então - e não o serão ainda? - 
os nossos amigos. O mais, gente ideias
costumes, tudo tinha o mesmo cheiro
de caserna aliada a sacristia.
Dessa cidade em nós nada ficou.
De nós, que ficará nessa cidade.
                                                       1983
Eugénio de Andrade
Pintura de Vieira da Silva



sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Cruzeiro Seixas

 


Levado pelas águas

sem jamais encontrar o mar

ferozmente atacado por uma flor

olho os dinossauros idilicamente

pastando nas margens. Que vejo eu?

Já não resta fóssil sobre fóssil

e só os náufragos ainda repetem os erros de ortografia

de continente em continente.

As plumagens agitadas das palavras são estandartes

atravessando o espaço e o sono

livres em toda a sua estranhíssima glória.

São os peixes esverdeados

que escondem sob as roupagens os labirintos

e as maquinarias prontas a investir

contra o paraíso.

A experiência impregnou as pedras da sua voz rouca

e as coisas são como um tríptico aberto

mostrando aos canibais perplexos

os nós mais secretos

daquele marinheiro alado.

Desfia-se já o fio que há séculos nos mantém.

 

Tenho frio

e imploro que me cubram com o dilúvio

ao som de trombetas exacerbadas:

que me cubram a mim e ao eco,

e à memória de tudo isto.

Estou ainda aqui,

e vejo

como um cego vê o mar.


Cruzeiro Seixas

(texto e gravura)

https://www.youtube.com/watch?v=XGiEh774GBg