domingo, 21 de março de 2021

Pânico



Olho, aterrado, a grande mesa posta.
Quem presumiu em mim fome tamanha?
Todo o maná sagrado da montanha
Servido lautamente
A um só conviva!
À luz do sol poente,
Numa quase agressiva
Pressa de comunhão, as penedias
São raras iguarias
Dum banquete irreal
De que sou comensal
Apenas eu...
Como se um pigmeu
Pudesse devorar num breve instante
A refeição eterna dum gigante!

Miguel Torga, 25 de Março de 1961


domingo, 7 de março de 2021

Os Papelotes


Nunca choraremos bastante

termos querido ser belas

à viva força

eu quis ser bela

e julguei que para ser bela

bastava usar canudos

pedi para me fazerem canudos

com um ferro de frisar e papelotes

puxaram-me muito pelos cabelos

eu gritei

disseram-me para ser bela

é preciso sofrer

depois o cabelo queimou-se

não voltou a crescer

tive de passar a andar com uma peruca

para ser bela é preciso sofrer

mas sofrer não nos faz forçosamente belas

um sofrimento não implica como consequência

uma recompensa

uma dor de dentes pode comover a nossa mãe

que para nos consolar sem saber de quê

nos dá um rebuçado

mas o rebuçado ainda nos faz doer mais os dentes

a consequência de um sofrimento

pode ser outro sofrimento

a causa é posterior ao efeito

o motivo do sofrimento é uma das consequências

do sofrimento

os papelotes são uma consequência da peruca


Adília Lopes
Pintura de Paula Rego

domingo, 28 de fevereiro de 2021

Ainda estamos aqui


O meu pai segura um doce de ovos moles entre o polegar e o indicador, segura o objecto mais delicado do mundo. Tem a forma de um búzio. Segura-o exatamente pelo vértice, é uma forma branca e elegante. Olha esse pequeno búzio como se o analisasse, não o perde de vista, segue-o ao aproximá-lo da boca e até mordê-lo com a ponta dos dentes: dentadinha. Neste momento, o meu pai é homem, mas também é menino; é forte, mas também é frágil. Não se apercebe da ternura que o envolve.

A minha mãe guarda o doce que lhe calhou, é uma pequena concha. Procura um lenço no interior da mala, a minha mãe tem sempre um lenço lavado e passado a ferro. Mais tarde, irá oferecer-me este doce de ovos moles, talvez depois de jantar, talvez um pouco esmagado pelas horas dentro da mala, talvez com alguma penugem do lenço. A minha mãe está a guardar o doce para mim. Ouço frases breves na voz da minha irmã, dá-me instruções acerca de como morder o doce devagar, como saboreá-lo. Ao mesmo tempo, sem palavras, ensina-me também a fechar os olhos para sentir o sabor a avançar pelo interior da boca, a ser um lugar, como um terreno de açúcar que se expande pelo negro que possuímos por dentro, que o ilumina de certo modo, que lhe dá forma e superfície. Eu tenho o direito de ficar com o doce maior. Quero ser adolescente, mas não prescindo dos meus privilégios de criança. Tem a forma de um peixe com escamas ténues, como uma sardinha com cara de pessoa. Seguro-lhe pelo rabo e, antes ou depois de trincá-lo, fixo este momento.

Estamos sentados na carrinha estacionada. Diante da ria, um pouco afastados do centro de Aveiro. No lugar do condutor, com o volante diante da barriga, o meu pai; a seu lado, a minha mãe; no banco de trás, a minha irmã e eu. Neste momento, a nossa carrinha é a nossa casa.

Escrevo estas palavras escolhidas, estes substantivos, estes adjetivos, declino estes verbos no presente e, ao fazê-lo, é como se estivesse lá, ainda ao lado da minha irmã, na presença do meu pai e da minha mãe. Como são fortes as palavras, carregam todo o peso da memória. Sustentam-na sem aparentar qualquer esforço.

Há poucas semanas, estive em Aveiro. Eu era um homem de quarenta e três anos. Eu era um homem sozinho, de quarenta e três anos. Tive algum tempo para passear, não muito. Inclinado sobre as grades de uma ponte, assisti à passagem de barcos cheios de turistas ao longo da ria. Se existissem barcos desses quando estivemos lá, teríamos andado. 

Agora, essa seria uma lembrança boa.
Em silêncio, contemplando a lonjura através do para-brisas, o meu pai dá mais uma dentadinha no doce de ovos moles. Esse búzio tem um interior de amarelo vivo, como se fosse feito de ouro húmido. Este é o poder dos verbos conjugados no presente. A minha irmã também desfruta do seu doce de ovos moles. A minha mãe, sem saber, desfruta da segurança deste instante. Em silêncio, no interior de mim, aqui e lá, digo-lhes: aproveitem este momento, pai, mãe, mana. Estamos juntos neste tempo que nos inunda e nos preenche. O tempo é a vida.

 

José Luís Peixoto
Pintura de Zé Penicheiro

sábado, 20 de fevereiro de 2021

Às afirmações dogmáticas...

Às afirmações dogmáticas, à imposição dos conceitos, o construtor opõe a simplicidade primeira de uma energia que nunca é figurada mas cintila e estremece nas formas subtis da construção. Nas paredes que ergue o longínquo reflecte-se e palpita como uma pálpebra marinha. A proximidade de um rio e de uma pequena ilha no meio dele acompanha-o como uma presença cúmplice e preciosa. O visitante que nunca virá, mesmo quando a casa estiver construída, é a presença da ausência que pulsa e a abertura viva do invisível.

António Ramos Rosa
Pintura de Pedro Calapez
https://www.youtube.com/watch?v=tgCQAe_MNg8

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Não o sabias?

Deixa o pão aberto sobre a mesa. Vê de novo

as searas, os campos descobertos, os sulcos,

a poeira também. Presta atenção. Mais uma vez

procura aquilo de que te alimentas, o seu gosto

ou a prece que devagar pronuncias. É só no interior

dele mesmo que se conserva a temperatura

com que o fizeram, o ar ainda aquecido. Desconhecemos

como chegou o fermento, o modo como outrora

tinha germinado. Não te importes...Leva-o à tua boca,

depois fecha os olhos para assim encontrares

uma outra imagem, as feições desconhecidas

que nele existem. Vê a sua cor, estas sombras,

o contorno cada vez mais simples em que se pode 

tocar. Não o sabias? O pão tem um rosto.


Fernando Guimarães
Pintura de Josefa de Óbidos


domingo, 31 de janeiro de 2021

O Mandarim

Chamo-me Teodoro - e fui amanuense do Ministério do Reino.
Nesse tempo vivia eu à Travessa da Conceição nº 106, na casa de hóspedes da D. Augusta, viúva do major Marques.
Uma noite, há anos, eu começara a ler, num desses in-fólios vetustos, um capítulo intitulado "Brecha das Almas"; e ia caindo numa sonolência grata, quando este período singular se me destacou do tom neutro e apagado da página, com o relevo de uma medalha de ouro nova brilhando sobre um tapete escuro. Copio textualmente: 



" No fundo da China existe um mandarim mais rico que todos os reis de que a fábula ou a história contam. Dele nada conheces, nem o nome, nem o semblante, nem a seda de que se veste. Para que tu herdes os seus cabedais infindáveis, basta que toques essa campainha, posta a teu lado, sobre um livro. Ele soltará apenas um suspiro, nesses confins da Mongólia. Será então um cadáver: e tu verás a teus pés mais ouro do que pode sonhar a ambição de um avaro. Tu, que me lês e és um homem mortal, tocarás tu a campainha?"

Eça de Queiroz
 


sábado, 30 de janeiro de 2021

Evadir-me, esquecer-me

Evadir-me, esquecer-me, regressar

À frescura das coisas vegetais,

Ao verde flutuante dos pinhais

Percorridos de seivas virginais

E ao grande vento límpido do mar.


Sophia de Mello Breyner Andreden
Pintura de Sorolla
https://www.youtube.com/watch?v=NgFOMbRPiN8&t=45s