Quem presumiu em mim fome tamanha?
domingo, 21 de março de 2021
Pânico
Quem presumiu em mim fome tamanha?
domingo, 7 de março de 2021
Os Papelotes
Nunca choraremos bastante
termos querido ser belas
à viva força
eu quis ser bela
e julguei que para ser bela
bastava usar canudos
pedi para me fazerem canudos
com um ferro de frisar e papelotes
puxaram-me muito pelos cabelos
eu gritei
disseram-me para ser bela
é preciso sofrer
depois o cabelo queimou-se
não voltou a crescer
tive de passar a andar com uma peruca
para ser bela é preciso sofrer
mas sofrer não nos faz forçosamente belas
um sofrimento não implica como consequência
uma recompensa
uma dor de dentes pode comover a nossa mãe
que para nos consolar sem saber de quê
nos dá um rebuçado
mas o rebuçado ainda nos faz doer mais os dentes
a consequência de um sofrimento
pode ser outro sofrimento
a causa é posterior ao efeito
o motivo do sofrimento é uma das consequências
do sofrimento
os papelotes são uma consequência da peruca
Pintura de Paula Rego
domingo, 28 de fevereiro de 2021
Ainda estamos aqui
O meu pai segura um doce de ovos moles entre o polegar e o indicador, segura o objecto mais delicado do mundo. Tem a forma de um búzio. Segura-o exatamente pelo vértice, é uma forma branca e elegante. Olha esse pequeno búzio como se o analisasse, não o perde de vista, segue-o ao aproximá-lo da boca e até mordê-lo com a ponta dos dentes: dentadinha. Neste momento, o meu pai é homem, mas também é menino; é forte, mas também é frágil. Não se apercebe da ternura que o envolve.
A minha mãe guarda o doce que lhe calhou, é uma pequena concha. Procura um lenço no interior da mala, a minha mãe tem sempre um lenço lavado e passado a ferro. Mais tarde, irá oferecer-me este doce de ovos moles, talvez depois de jantar, talvez um pouco esmagado pelas horas dentro da mala, talvez com alguma penugem do lenço. A minha mãe está a guardar o doce para mim. Ouço frases breves na voz da minha irmã, dá-me instruções acerca de como morder o doce devagar, como saboreá-lo. Ao mesmo tempo, sem palavras, ensina-me também a fechar os olhos para sentir o sabor a avançar pelo interior da boca, a ser um lugar, como um terreno de açúcar que se expande pelo negro que possuímos por dentro, que o ilumina de certo modo, que lhe dá forma e superfície. Eu tenho o direito de ficar com o doce maior. Quero ser adolescente, mas não prescindo dos meus privilégios de criança. Tem a forma de um peixe com escamas ténues, como uma sardinha com cara de pessoa. Seguro-lhe pelo rabo e, antes ou depois de trincá-lo, fixo este momento.
Estamos sentados na carrinha estacionada. Diante da ria, um pouco afastados do centro de Aveiro. No lugar do condutor, com o volante diante da barriga, o meu pai; a seu lado, a minha mãe; no banco de trás, a minha irmã e eu. Neste momento, a nossa carrinha é a nossa casa.
Escrevo estas palavras escolhidas, estes substantivos, estes adjetivos, declino estes verbos no presente e, ao fazê-lo, é como se estivesse lá, ainda ao lado da minha irmã, na presença do meu pai e da minha mãe. Como são fortes as palavras, carregam todo o peso da memória. Sustentam-na sem aparentar qualquer esforço.
Há poucas semanas, estive em Aveiro. Eu era um homem de quarenta e três anos. Eu era um homem sozinho, de quarenta e três anos. Tive algum tempo para passear, não muito. Inclinado sobre as grades de uma ponte, assisti à passagem de barcos cheios de turistas ao longo da ria. Se existissem barcos desses quando estivemos lá, teríamos andado.
sábado, 20 de fevereiro de 2021
Às afirmações dogmáticas...
Às afirmações dogmáticas, à imposição dos conceitos, o construtor opõe a simplicidade primeira de uma energia que nunca é figurada mas cintila e estremece nas formas subtis da construção. Nas paredes que ergue o longínquo reflecte-se e palpita como uma pálpebra marinha. A proximidade de um rio e de uma pequena ilha no meio dele acompanha-o como uma presença cúmplice e preciosa. O visitante que nunca virá, mesmo quando a casa estiver construída, é a presença da ausência que pulsa e a abertura viva do invisível.
sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021
Não o sabias?
Deixa o pão aberto sobre a mesa. Vê de novo
as searas, os campos descobertos, os sulcos,
a poeira também. Presta atenção. Mais uma vez
procura aquilo de que te alimentas, o seu gosto
ou a prece que devagar pronuncias. É só no interior
dele mesmo que se conserva a temperatura
com que o fizeram, o ar ainda aquecido. Desconhecemos
como chegou o fermento, o modo como outrora
tinha germinado. Não te importes...Leva-o à tua boca,
depois fecha os olhos para assim encontrares
uma outra imagem, as feições desconhecidas
que nele existem. Vê a sua cor, estas sombras,
o contorno cada vez mais simples em que se pode
tocar. Não o sabias? O pão tem um rosto.
Pintura de Josefa de Óbidos
domingo, 31 de janeiro de 2021
O Mandarim
sábado, 30 de janeiro de 2021
Evadir-me, esquecer-me
Evadir-me, esquecer-me, regressar
À frescura das coisas vegetais,
Ao verde flutuante dos pinhais
Percorridos de seivas virginais
E ao grande vento límpido do mar.