sábado, 24 de abril de 2021

Os livros



É então isto um livro,

este, como dizer?, murmúrio,

este rosto virado para dentro de

alguma coisa escura que ainda não existe

que, se uma mão subitamente

inocente a toca,

se abre desamparadamente

como uma boca

falando com a nossa voz?

É isto um livro,

esta espécie de coração (o nosso coração)

dizendo "eu" entre nós e nós?


Manuel António Pina

https://vimeo.com/3691184


terça-feira, 13 de abril de 2021

Para o esquecimento

 


Pensa que queria que fosse como dantes


Quando não queria saber mais nada

Quando caminhar chegava

Quando falar nunca era mais ou menos que


Quando as cores tinham os tons certos

E as dúvidas duração sem angústia


Pensa que queria ser como fui um dia

E não ter aprendido com engano nenhum


Susana M. Marques

Desenho de Picasso

https://www.youtube.com/watch?v=rzy2wZSg5ZM


domingo, 11 de abril de 2021

O CAMINHO DE CASA (II)

GÓTICO AMERICANO


Uma recordação chega
para fender os alicerces,
a dúvida rasga as cortinas
por onde se côa o sangue dos dias felizes.

As filhas passadas já não correm no jardim,
já ninguém responde quando chamo
pelos seus vagos nomes que chamo
como se chamassem eles por mim.

Tu lavas a louça na cozinha
entre cheiros sujos e restos de comida,
ou ficas à janela infinitamente;
os vizinhos mudaram-se, o cão morreu para sempre.

            casa agora é feita d' ângulos agudos,
        de perguntas, de poços descobertos, 
        e nós perdemo-nos por dentro d'outros mundos
        por portas que se abriram para dentro.

 O meu coração repousa
 na cave no meio da minha vida
 e eu vagueio lá fora entre os sentidos.
 Sou eu quem chama, não me ouves bater? 


              Manuel António Pina

               Pintura de Grant Wood

              https://www.youtube.com/watch?v=9kUA2gAlCZY  


            

 

sábado, 27 de março de 2021

Quando já principia a anoitecer

Que é dos chícharos de flores azuladas que não voltei a ver?

Que é desse meu colchão de palha de milho

das cadeiras a pau na pedra do lar

do cheiro a rosas e a saias novas

na minha aldeia nas férias da páscoa?

Onde estão hoje os cerrados de milho já embandeirado?

Onde a repentina explosão daqueles botões brancos

da macieira recortados nos montes em frente

botões exuberantes como coisas que não tardam a morrer?

(...) Durmo cego no mais secreto mar

creio que ao longe já começa a anoitecer

não estou triste são só horas de jantar


Ruy Belo
Pintura de Amadeo de Souza Cardoso

domingo, 21 de março de 2021

Pânico



Olho, aterrado, a grande mesa posta.
Quem presumiu em mim fome tamanha?
Todo o maná sagrado da montanha
Servido lautamente
A um só conviva!
À luz do sol poente,
Numa quase agressiva
Pressa de comunhão, as penedias
São raras iguarias
Dum banquete irreal
De que sou comensal
Apenas eu...
Como se um pigmeu
Pudesse devorar num breve instante
A refeição eterna dum gigante!

Miguel Torga, 25 de Março de 1961


domingo, 7 de março de 2021

Os Papelotes


Nunca choraremos bastante

termos querido ser belas

à viva força

eu quis ser bela

e julguei que para ser bela

bastava usar canudos

pedi para me fazerem canudos

com um ferro de frisar e papelotes

puxaram-me muito pelos cabelos

eu gritei

disseram-me para ser bela

é preciso sofrer

depois o cabelo queimou-se

não voltou a crescer

tive de passar a andar com uma peruca

para ser bela é preciso sofrer

mas sofrer não nos faz forçosamente belas

um sofrimento não implica como consequência

uma recompensa

uma dor de dentes pode comover a nossa mãe

que para nos consolar sem saber de quê

nos dá um rebuçado

mas o rebuçado ainda nos faz doer mais os dentes

a consequência de um sofrimento

pode ser outro sofrimento

a causa é posterior ao efeito

o motivo do sofrimento é uma das consequências

do sofrimento

os papelotes são uma consequência da peruca


Adília Lopes
Pintura de Paula Rego

domingo, 28 de fevereiro de 2021

Ainda estamos aqui


O meu pai segura um doce de ovos moles entre o polegar e o indicador, segura o objecto mais delicado do mundo. Tem a forma de um búzio. Segura-o exatamente pelo vértice, é uma forma branca e elegante. Olha esse pequeno búzio como se o analisasse, não o perde de vista, segue-o ao aproximá-lo da boca e até mordê-lo com a ponta dos dentes: dentadinha. Neste momento, o meu pai é homem, mas também é menino; é forte, mas também é frágil. Não se apercebe da ternura que o envolve.

A minha mãe guarda o doce que lhe calhou, é uma pequena concha. Procura um lenço no interior da mala, a minha mãe tem sempre um lenço lavado e passado a ferro. Mais tarde, irá oferecer-me este doce de ovos moles, talvez depois de jantar, talvez um pouco esmagado pelas horas dentro da mala, talvez com alguma penugem do lenço. A minha mãe está a guardar o doce para mim. Ouço frases breves na voz da minha irmã, dá-me instruções acerca de como morder o doce devagar, como saboreá-lo. Ao mesmo tempo, sem palavras, ensina-me também a fechar os olhos para sentir o sabor a avançar pelo interior da boca, a ser um lugar, como um terreno de açúcar que se expande pelo negro que possuímos por dentro, que o ilumina de certo modo, que lhe dá forma e superfície. Eu tenho o direito de ficar com o doce maior. Quero ser adolescente, mas não prescindo dos meus privilégios de criança. Tem a forma de um peixe com escamas ténues, como uma sardinha com cara de pessoa. Seguro-lhe pelo rabo e, antes ou depois de trincá-lo, fixo este momento.

Estamos sentados na carrinha estacionada. Diante da ria, um pouco afastados do centro de Aveiro. No lugar do condutor, com o volante diante da barriga, o meu pai; a seu lado, a minha mãe; no banco de trás, a minha irmã e eu. Neste momento, a nossa carrinha é a nossa casa.

Escrevo estas palavras escolhidas, estes substantivos, estes adjetivos, declino estes verbos no presente e, ao fazê-lo, é como se estivesse lá, ainda ao lado da minha irmã, na presença do meu pai e da minha mãe. Como são fortes as palavras, carregam todo o peso da memória. Sustentam-na sem aparentar qualquer esforço.

Há poucas semanas, estive em Aveiro. Eu era um homem de quarenta e três anos. Eu era um homem sozinho, de quarenta e três anos. Tive algum tempo para passear, não muito. Inclinado sobre as grades de uma ponte, assisti à passagem de barcos cheios de turistas ao longo da ria. Se existissem barcos desses quando estivemos lá, teríamos andado. 

Agora, essa seria uma lembrança boa.
Em silêncio, contemplando a lonjura através do para-brisas, o meu pai dá mais uma dentadinha no doce de ovos moles. Esse búzio tem um interior de amarelo vivo, como se fosse feito de ouro húmido. Este é o poder dos verbos conjugados no presente. A minha irmã também desfruta do seu doce de ovos moles. A minha mãe, sem saber, desfruta da segurança deste instante. Em silêncio, no interior de mim, aqui e lá, digo-lhes: aproveitem este momento, pai, mãe, mana. Estamos juntos neste tempo que nos inunda e nos preenche. O tempo é a vida.

 

José Luís Peixoto
Pintura de Zé Penicheiro