sexta-feira, 4 de junho de 2021

Quarentena

                         

                      Estar em casa

                      estar a estar

                      dias e dias

                    

                         Adília Lopes    26-IV-2020    11h14

                        Arte de Fernando Bento

                       https://www.youtube.com/watch?v=bNOPHw6fzok

 

                         

                         

quinta-feira, 3 de junho de 2021

A Rosalia de Castro


Divina Rosalía! Ó santa protectora
da terra da Galiza, a nossa terra Mãe!
Onde derrama um oiro triste a luz da aurora,
onde a névoa do mar descorre e encobre o Além,
onde há almas de Deus, no mundo prisioneiras, 
onde há rezas e sol, à noite, nas lareiras...

Divina! Ó virgem da tristeza!
Coração de mulher que abrange a Natureza
e num canto imortal a converteu.
Coração de mulher aberto à luz do céu
co'as lágrimas sem fim dos desgraçados
saturna multidão de povos emigrados...

Divina Rosalía.
Senhora da Saudade e da Melancolia...
Alma de Deus despida, exposta à chuva e ao vento
Alma, só alma, num deslumbramento
Alma, só alma, a errar na solidão
Alma, só alma, eterna aparição.

Aparição da dor, aparição do amor.
Alma, só alma, apenas alma em flor.

Teixeira de Pascoaes
Pintura de Henrique Medina

quinta-feira, 27 de maio de 2021

Os meus sapatos



Sapatos, rosto secreto da minha vida interior:
Duas bocas desdentadas e hiantes,
Duas peles de animais parcialmente decompostas
A cheirar a ninhos de ratos.

De que me valem os livros
Quando em vocês é possível ler
O Evangelho da minha vida na terra
E ainda mais além, das coisas por vir?

Quero proclamar a religião
Que concebi para a vossa humildade perfeita
E a estranha igreja que estou a erigir
Tendo-vos por altar.

Ascéticos e maternais, vão persistindo:
Semelhantes a bois, a Santos, a condenados,
Com a vossa paciência calada, compondo
O meu único retrato verdadeiro.

Charles Simic (tradução: Vasco Gato)
Pintura de Van Gogh

domingo, 23 de maio de 2021

Bom dia!


A expressão Bom dia! é usada na língua comum por muitas pessoas no português europeu há muito tempo. Foi inventada por alguém um dia e a moda pegou. Saber se foi assim e como isso aconteceu e acontece é uma questão muito complicada. Aprendi isto nas aulas de linguística da Faculdade de Letras.

Acho Bom dia! lindo. É um grande verso, um grande poema. Acho que Homero não fica zangado se eu disser que acho Bom dia! tão bom ou melhor do que a Odisseia ou a Ilíada.

Bom dia! é uma oração, um poema de amor, uma epopeia.


Adília Lopes

Pintura de Monet

https://www.youtube.com/watch?v=V_CoRI1nT14

domingo, 16 de maio de 2021

As mulheres aspiram a casa


AS MULHERES ASPIRAM A CASA PARA DENTRO DOS PULMÕES

As mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões

E muitas transformam-se em árvores cheias de ninhos - digo,

As mulheres - ainda que as casas apresentem os telhados inclinados

Ao peso dos pássaros que se abrigam.

 

É à janela dos filhos que as mulheres respiram

Sentadas nos degraus olhando para eles e muitas

Transformam-se em escadas

 

Muitas mulheres transformam-se em paisagens

Em árvores cheias de crianças trepando que se penduram

Nos ramos - no pescoço das mães - ainda que as árvores irradiem

Cheias de rebentos

 

As mulheres aspiram para dentro

E geram continuamente. Transformam-se em pomares.

Elas arrumam a casa

Elas põem a mesa

Ao redor do coração.


Daniel Faria

Arte de Julião Sarmento 

https://www.youtube.com/watch?v=59KcwtUFrvY

sábado, 1 de maio de 2021

Mãe

Eu sou aquela que os vê.
E caminho pelos seus caminhos e sou a
fogueira distante.
O tempo não me apaga.
Tenho os pontos cardeais e sou a bússola nas
suas mãos,
quando eles vão sobre as águas.
Sou os mapas, a constelação, o cruzeiro do sul,
o arado, o cão,
aquela que os guarda.
Sou o regaço, as belas plumas do meu regaço,
a imensa luz de amor que cai sobre a sua
penumbra,
sobre a sua loucura.
Sou a mãe da sua vida, da sua morte.
E vou com eles, espalhando as rosas tristes,
e os meus cabelos espalham sobre os seus
cabelos as raízes brancas.
Sou aquela que escreve quando eles dormem,
sou as palavras através do sono.
E adormeço com eles,
fechando as últimas portas.

José Agostinho Baptista
Pintura de Sarah Affonso

domingo, 25 de abril de 2021

E agora José


Lá vai o português

Lá vai o português, diz o mundo, quando diz, apontando umas criaturas carregadas de História que formigam à margem da Europa.

Lá vai o português, lá anda. Dobrado ao peso da História, carregando-a de facto, e que remédio – índias, naufrágios, cruzes de padrão (as mais pesadas). Labuta a côdea do sol-a-sol e já nem sabe se sonha ou se recorda. Mal nasce deixa de ser criança: fica logo com oito séculos.
No grande atlas dos humanos talvez figure como um ser mirrado de corpo, mirrado e ressequido, mas que outra forma podia ele ter depois de tantas gerações a lavrar sal e cascalho? Repare-se que foi remetido pelos mares a uma estreita faixa de litoral (Lusitânia, assim chamada) e que se cravou nela com unhas e dentes, com amor, com desespero ou lá o que é. Quer isto dizer que está preso à Europa pela ponta, pelo que sobra dela, para não se deixar devolver aos oceanos que descobriu com muita honra. E nisso não é como o coral que faz pé-firme num ondular de cores vivas, mercados e joalharia; é antes como o mexilhão cativo, pobre e obscuro, já sem água, todo crespo, que vive a contra-corrente no anonimato do rochedo. (De modo que quando a tormenta varre a Europa é ele que a suporta e se faz pedra, mais obscuro ainda).
Tem pele de árabe, dizem. Olhos de cartógrafo, travo de especiarias. Em matéria de argúcias será judeu, porém não tenaz: paciente apenas. Nos engenhos da fome, oriental. Há mesmo quem lhe descubra qualquer coisa de grego, que é outra criatura de muitíssima História.
Chega-se a perguntar: está vivo? É claro que está: vivo e humilhado de tanto se devorar por dentro. Observado de perto pode até notar-se que escoa um brilho de humor por sob a casca, um riso cruel, de si para si, que lhe serve de distância para resistir e que herdou dos mais heróicos, com Fernão Mendes à cabeça, seu avô de tempestades. Isto porque, lá de quando em quando, abre muito em segredo a casca empedernida e, então sim, vê-se-lhe uma cicatriz mordaz que é o tal humor. Depois fecha-se outra vez no escuro, no olvidado.
Lá anda, é deixá-lo. Coberto de luto, suporta o sol africano que coze o pão na planície; mais a norte veste-se de palha e vai atrás da cabra pelas fragas nordestinas. Empurra bois para o mar, lavra sargaços; pesca dos restos, cultiva na rocha. Em Lisboa, é trepador de colinas e de calçadas; mouro à esquina, acocorado diante do prato. Em Paris e nos Quintos dos Infernos topa-a-tudo e minador. Mas esteja onde estiver, na hora mais íntima lembrará sempre um cismador deserto, voltado para o mar.
É um pouco assim o nosso irmão português. Somos assim, bem o sabemos.
Assim, como?

José Cardoso Pires, 1977

Pintura de Francisco Relógio

https://www.youtube.com/watch?v=gqMqK6Supww