quinta-feira, 27 de maio de 2021

Os meus sapatos



Sapatos, rosto secreto da minha vida interior:
Duas bocas desdentadas e hiantes,
Duas peles de animais parcialmente decompostas
A cheirar a ninhos de ratos.

De que me valem os livros
Quando em vocês é possível ler
O Evangelho da minha vida na terra
E ainda mais além, das coisas por vir?

Quero proclamar a religião
Que concebi para a vossa humildade perfeita
E a estranha igreja que estou a erigir
Tendo-vos por altar.

Ascéticos e maternais, vão persistindo:
Semelhantes a bois, a Santos, a condenados,
Com a vossa paciência calada, compondo
O meu único retrato verdadeiro.

Charles Simic (tradução: Vasco Gato)
Pintura de Van Gogh

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