sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Moliceiro

Morro de amor pelas águas da ria

Esta espuma de dor eu não sabia
Sou moliceiro do teu lodo fecundo
Sou a ria de Aveiro, o sal do mundo

Vara comprida
Tamanho da vida
Braço de mar
A lavrar, a lavrar

Morro de amor nesta rede que teço
E é no sal do suor que eu aconteço
Para além da salina o horizonte me ensina
Que há muito mar, muito mar pra lavrar, pra lavrar

Ary dos Santos ( do repertório de Carlos do Carmo)
https://www.youtube.com/watch?v=c1oxr3PUXr0

                                 Aguarela de Roque Gameiro

Ria de Aveiro

 4 horas da tarde

É neste ponto, depois da barra, que a ria desvanecida se imaterializa e atinge a perfeição suprema. S. Jacinto das Areias, pintado de vermelho e envernizado de novo, revê-se no espelho límpido das águas. Adiante há um pinheiral na duna, pequenino e já misterioso. À direita, em diferentes gradações de roxo, o vasto acampamento das salinas estende-se muito ao longe até à serra. Azul, azul vivo, azul que a luz trespassa e estremece, azul que não tem limites. Também a terra se prolonga e o amplo panorama se torna irreal. Aqui a matéria não existe. As terras alagadas têm tanta transparência como a ria. Distingo árvores, mas as árvores são traços de cor diluída e nascem da água; adiante riscos de uma paliçada ou um pedaço de areia desvanecida... O que há é azul a jorros, uma vasta amplidão indistinta como num sonho, cheia de ar húmido e envolvida em luz carinhosa. As coisas são tão leves, que a luz as atravessa... Vogamos. Seis horas, sete horas... Era preciso anotar a todos os momentos a aparência dos seres e das coisas, que a cada minuto se transformam. O mesmo panorama toma novos aspectos de sonho translúcido à medida que a luz esmorece e o barco se desloca. Às  oito horas estamos de novo perto da barra e o jorro que vem do mar parece lava fundida. O poente avermelha as areias e acende na água um rasto de estrelas.

Raul Brandão





quinta-feira, 12 de agosto de 2021

De Aveiro

Quem, por uma calma e luminosa manhã  de Agosto ou Setembro, deixar a cidade, seguindo a estrada da Barra - essa estrada singular, ladeada de água, com a ria por uma banda e pela outra as marinhas - e parando a meio do caminho, pelas alturas do lago do Paraíso, circunvagar em torno a vista, terá a larga visão panorâmica de uma das mais admiráveis e soberbas paisagens do nosso país. Voltando-se para a cidade, olhando por sobre os tabuleiros das marinhas, de águas paradas e polidas como placas rectangulares de vidro, vê-la- á estender-se numa linha de casaria acotovelada - traços brancos de paredes sob traços vermelhos de telhados - acima da qual se erguem perfis de torres ou altos muros de edifícios públicos e de fábricas. Depois, num segundo plano, de uma extensa gama de verdes, descobrirá os campos, os imensos milhares, as massas de arvoredo - os choupos e salgueiros que formam as cortinas marginais do Vouga, os pinheiros sombrios, os velhos álamos da estrada de Ílhavo, os tufos isolados dos esguios eucaliptos. De entre esta verdura, surgir-lhe-á a mescla branca das povoações circunvizinhas(...) E para lá, enfim,  de toda esta zona verdejante e apenas levemente ondulada, erguer-se-á ante a sua vista, no esplendor de uma imaterialização luminosa, um traço longo e caprichoso que se diria dado com uma pincelada de ametistas e safiras liquefeitas, a magnífica linha orográfica das cordilheiras da Beira: as serranias majestosas de Arouca, das Talhadas e do Caramulo, com o seu pico central e, mais para sul a avançada do Buçaco e os perfis vagos da Estrela e da Lousã, esbatendo-se diafanamente no céu de lápis-lazúli.

Luís de Magalhães (1859-1935)

                                                                          Postais antigos  




                                                                          Fotos actuais





domingo, 1 de agosto de 2021

Madrugada


Um leve tremor precede a madrugada

Quando mar e céu na mesma cor se azulam

E são mais claras as luzes dos barcos pescadores

E para além de insânias e rumores

A nossa vida se vê extasiada


Sophia de Mello Breyner Andresen

Foto do nascer do sol na Ilha do Farol, 2012

https://www.youtube.com/watch?v=sBOR1Ha7QZA

sábado, 17 de julho de 2021

Vazio


Todo o mar nos meus olhos, e não basta!
Enche-os mais uma lágrima furtiva...
Neste banquete azul, há um só conviva
Farto e feliz,
É o céu, que se debruça sobre as ondas
Sem amargura.
É ele, que não procura
Por detrás da verdade outra verdade.
Serenamente, lá da eternidade,
Bebe e come 
A imagem reflectida do seu nome.

Miguel Torga
Arte de Urbano




terça-feira, 29 de junho de 2021

A uma cerejeira em flor

Acordar: ser na manhã de abril

a brancura desta cerejeira, 

arder das folhas à raiz,

dar versos ou florir desta maneira.


Abrir os braços, acolher nos ramos

o vento, a luz, ou o que quer que seja:

sentir o tempo, fibra a fibra, 

a tecer o coração de uma cereja.


Eugénio de Andrade
Pintura de van Gogh



domingo, 20 de junho de 2021

Curar a infância

Quando me mandaram para a escola, tão atrás da nossa casa, tão perto, fugi para os campos e deambulei até me parecer pelo sol que teriam passado as horas da classe.
Terá sido ao faltar a quarta manhã que foram perguntar à minha irmã Flor se eu estaria doente.
Quando eu, orientado à sorte pelo sol, cheguei a casa, confessei que me sentava nos campos abaixo da Cavada. Ia sozinho. Punha-me encostado ao muro, numa pedra que lá havia parecida a um banco de bom tamanho, e abaixava a cabeça para não ser visto acima das giestas já secas. Reiterei que sabia tudo, eu sabia tudo. Comecei a chorar desalmado. Então, a minha mãe perguntou se eu não gostaria de aprender a guardar as coisas de dentro da cabeça. Ainda hoje me fascina o modo como ela entendeu o meu mundo. Pensei primeiro que teríamos tripas na cabeça, peles e órgãos feios como havia nos bichos que eram cozinhados. Depois, ela disse: as coisas de pensar. Tu tens de aprender a guardar as coisas de pensar. Se souberes escrever, as folhas de papel serão caixinhas onde podes arrumar com palavras tudo aquilo que não queres esquecer. E as folhas de papel, tão planas e aparentemente vazias, adquiriam fundura, uma imensidão inesperada, porque, se eu soubesse escrever pirilampo, para sempre um pirilampo estaria ali, talvez até de cauda acesa, à minha espera. Meu. Sem ir embora. Eu disse: é a minha palavra preferida. A minha mãe respondeu: eu sei. Aceitei ir à escola porque aceitei ser torturado em troca da ciência deslumbrante de aprender a guardar a fortuna das palavras.

Valter Hugo Mãe
Pintura de Eduardo Berliner