quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Europa (1944-1945)




Europa, sonho futuro!

Europa, manhã por vir,

fronteiras sem cães de guarda,

nações com seu riso franco

abertas de par em par!


Europa sem misérias arrastando seus andrajos,

virás um dia? Virá o dia

em que renasças purificada?

Serás um dia o lar comum dos que nasceram

no teu solo devastado?

Saberás renascer, Fénix, das cinzas

em que arda enfim, falsa grandeza,

a glória que teus povos se sonharam

— cada um para si te querendo toda?



Europa, sonho futuro,

se algum dia há-se-ser!

Europa que não soubeste

ouvir do fundo dos tempos

a voz na treva clamando

que tua grandeza não era

só do espírito seres pródiga

se do pão eras avara!

Tua grandeza a fizeram

os que nunca perguntaram

a raça por quem serviam.

Tua glória a ganharam

mãos que livres modelaram

teu corpo livre de algemas

num sonho sempre a alcançar!


Europa, ó mundo a criar!


Adolfo Casais Monteiro,
Pintura "O rapto de Europa" de Rembrandt





sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Bilbao

Visita ao Museu Guggenheim







Casco Viejo




Passeio  de barco pela ria





                                                           
Perto do Museu Guggenheim...


....o edifício projectado pelo arquitecto Sisa Vieira


Juntos



Esta terra, este tempo, esta espantosa podridão
que me acompanha desde que nasci
(porque sou filho de uma pátria triste
e bela como um sonho de pedra e sol; de um tempo
amargo como a borra
da história):
esta terra, este tempo que tiram de meus pés
até arrancar os ossos à minha última esperança,
ah, não poderão, não poderão jamais me vencer,
porque minha mão se estende e se agarra
a outra mão humana e a outra mão,
que me encadeiam, mãe imensa, a ti.

Blas Otero, poeta basco

A casa de meu pai


Defenderei
a casa de meu pai.
Contra os lobos,
contra a seca,
contra a usura,
contra a justiça,
defenderei
a casa
de meu pai.
Perderei
o gado,
as plantações,
os pinheirais;
perderei
os juros,
as rendas,
os dividendos,
mas defenderei a casa de meu pai.
Me tirarão as armas
e com as mãos defenderei
a casa de meu pai;
me cortarão as mãos
e com os braços defenderei
a casa de meu pai;
me deixarão
sem braços,
sem ombros
e sem peitos,
e com a alma defenderei
a casa de meu pai.
Morrerei,
a minha alma se perderá,
a minha prole se perderá,
mas a casa de meu pai
permanecerá
em pé.


Gabriel Aresti, poeta basco
trad. Fábio Aristimunho

País Basco

 

Amanheceu uma manhã esplêndida, pura, lavada, e depois de beber uma manzanilla (infusão de camomila) e de nos despedirmos da dona da casa, empreendemos a subida de Aitzgorri. O sol dourava ao longe as alturas, e pelo carreiro pedregoso e em ziguezague ia-se-nos abrindo o peito ao ar virginal da manhã montanhesa.
Por fim, no alto, na crista, na pequena varanda da ermida da Cruz,  lançávamos um olhar de águia aos vales Guipúzcoa de um lado, à planície de Álava e aos cimos de Navarra e Rioja, pelo outro. Além, ao longe, sobre os lagos de névoas, outras cristas a que outras vezes subimos.
Aqui em baixo, no campo sem árvores,estão os pastores: pastores e, se se proporciona, contrabandistas. Deles poderiam sair os caçadores, e dos caçadores os guerrilheiros. Os guerrilheiros ágeis, de pés tão ligeiros como seguros, de andar de raposa. São os que impediram a passagem de Carlos Magno em Roncesvales, os que derrotaram Roldão; são os que estiveram quase a cortar a retirada a Massena; são os que, em duas guerras no século passado, puseram em xeque os exércitos nacionais. Porquê? No fundo, por lutar. A raposa, como a cabra, puxa sempre para o monte. É a liberdade, mas a liberdade pura, primitiva, sem programa, sem bandeira, sem hino; é a liberdade do ar dos cumes; é a vida, é o livre jogo de músculos, do peito, do olhar. Quem nestas alturas não se sente guerrilheiro, ao ver a seus pés o magnífico xadrez dos vales e das montanhas?
Já que tanto vos prego sermões do meu canto de académico de Salamanca, não vos parecerá mal que alguma vez dê largas às sugestões destas livres escapadelas pelos vales e cumes da minha terra. Quem sabe se dentro deste reitor universitário engaiolado em Salamanca, se dentro deste sisudo pregador, não se agita o livre raposo caçador?

Miguel de Unamuno (1864-1936)


domingo, 16 de outubro de 2022

À procura de si própria




 "Onde deixei a Mila?", pergunto-me, como se procurasse as chaves de casa. Terei ficado na Beira, em sessenta e sete, lendo um jornal em voz alta à sombra de um mamoeiro, ou serei aquele borrão de tinta na fotografia de uma barragem também em Moçambique? Serei as nódoas de água sobre a secretária do meu avô [português] Manuel; uma caneta na mala do avô [angolano] Castro; a pulga no colchão em São Gens? Encontrar uma pessoa pode ser sinal de que a procurámos. Parece-me todavia que "encontrar" não é um resultado previsto de "procurar" quando falamos de pessoas. Encontrar-me a mim é mais parecido com encontrara uma pulga quando se procurava um borrão; encontrar uma nódoa de água quando se procurava uma chave; encontrar uma caneta quando se procurava uma pessoa. O que se encontra reconfigura o que se procurava. A procura de uma origem e  de uma identidade não reconstitui a minha origem nem descobre a minha identidade. Uma pessoa apenas se encontra a si mesma por acaso.
"Onde deixei a Mila?" O tempo da procura coincide com o tempo da descoberta, exactamente como se percebesse o propósito do que escrevo no decurso de escrever. A pessoa que encontrei por acaso confunde-se com o resultado de uma procura apenas no sentido em que, se usarmos uma pá para desenterrar um baú, é possível que o baú encontrado esteja marcado pela pá que usámos. Tal conclusão mostra-me que apenas por acaso este é o meu cabelo. O que somos por escrito é tão diferente do que somos quanto uma nódoa de água é diferente de uma chave.

Djaimilia Pereira de Almeida


quarta-feira, 5 de outubro de 2022

As gavetas


 A gaveta é um poema 
                   um cuidadoso poema
sim                           Sim
                   um poema.

Guardar é uma coisa difícil
É por vezes um vício.

Eu aprendi a guardar
mas perdi tanta coisa que guardei
sem saber onde as metera
que errei longamente longe das minhas gavetas
longe de mim
longe das casas antigas
sem saber onde encontrar-me
sem poemas            sem mim.

Um dia
um dia longamente esperado
regressei.
À minha volta acenderam-se os objectos
iluminou-se o rosto                  das coisas
abriu-se o onde       as conheci e guardei.

As gavetas são os arquivos onde fechei o sol
onde semeei os instantes já vividos
as gavetas são os onde
                             onde se guardam esperas
mergulhadas
                    no murmúrio e no perfume
das eternas.

Não               não           os poemas não são
gavetas
mas sim                                               Sim
as gavetas são                                poemas.
                                                             Sim      
os arquivos                       dos poetas.


Salette Tavares (texto com supressões)
Pintura de Menez