sábado, 21 de junho de 2025

Casa de Zeca em Monsanto



João Afonso, irmão de José Afonso,  refere no seu livro "Um olhar fraterno":
"1969 - Zeca faz o único negócio que se lhe conhece da sua iniciativa. Compra por 10 contos, mediante ajuste verbal e entrega de dinheiro, uma casa tosca e exígua em plena aldeia de Monsanto (sem transmissão de jure)."
Dizia Zeca sobre a razão da compra da casa:
"Porque às vezes é preciso pôr lá fora alguns camaradas e vai servir para os esconder e passarem para Espanha."
A Câmara de Idanha-a-Nova intervenciona recuperando o imóvel por apresentar condições de risco.



A partir do ano de 1968, a música portuguesa nunca mais seria a mesma. O álbum Cantares do Andarilho (1968) onde se encontra "Senhora do Almurtão" marca o concretizar de um projecto inovador que procurava criar uma canção de índole nacional alicerçada na tradição popular, fiel às raízes, mas ao mesmo tempo moderna. Este objectivo foi totalmente conseguido pois as pessoas continuam apreciar a interpretação destas canções que fazem parte do repertório de muitos artistas portugueses.



sexta-feira, 20 de junho de 2025

Senhora do Almurtão

 


No segundo domingo da Páscoa e 2ª feira seguinte (dia do feriado municipal) realizam-se  as Festas em honra de Nossa Senhora de Almortão. É um culto muito antigo que atrai, todos os anos, milhares de visitantes a Idanha-a-Nova.
A romaria começa com uma missa solene, seguida de uma procissão tradicional. Após as cerimónias religiosas, as famílias e amigos reúnem-se para o convívio, onde se partilham momentos de alegria e muita animação. A festa é conhecida pelos tradicionais concertos de adufes e cantares tradicionais, com quadras dedicadas à Senhora do Almortão, que evocam a libertação do domínio espanhol. 




Lenda passada de geração em geração:


Num certo dia, neste sítio, um rapazinho que andava a guardar cabras viu, aqui no meio duma murteira, atrás desta fonte, uma santinha que parecia de marfim. Agarrou na santinha e guardou-a no sarrão. Chegou a casa e disse à mãe:
– Trago aqui uma santinha que encontrei, numa murteira ao pé duma fonte.
Diz-lhe a mãe:
– Achaste?
Abriu o sarrão e a santinha não estava lá. E disse para a mãe:
– Ora esta, trazia aqui uma santinha tão bonita e já cá não está!
No dia seguinte, voltou com o gado para o mesmo sítio e viu que estava lá a santinha, no meio da murteira. Agarrou nela, tornou a metê-la lá dentro e atou a boca com uma verguinha dum ramo de giesta ou piorno que encontrou.
E disse o rapaz para si mesmo:
– Ontem fugiste, mas hoje já não foges porque vais atada.
Quando chegou a casa, disse para a mãe:
– Agora já a trago. Atei-a.
Depois, ao abrir, disse:
– Mãe, é impossível! Não está cá!
A mãe disse-lhe que era uma ilusão que trazia com ele.
Respondeu o rapaz:
– Não, não é, mãe. Venha lá comigo. Há aqui um segredo qualquer.
E a mãe respondeu:
– Não é um segredo, é uma ilusão que trazes contigo.
E então, pediu por tudo à mãe para lá ir com ele. A mãe foi ao sítio e viu a santinha no meio da murteira e ficou sem fala.
Depois, disse a mãe:
– Que santinha será esta? Não a vamos levar daqui.
Depressa o povo acorreu e, maravilhado, decidiu levantar a capelinha, mas como o sítio em que apareceu a santinha era baixo, o povo resolveu levantar uma capelinha, no sítio onde se encontra ainda hoje que se via ao longe de todo o lado.

 

quinta-feira, 19 de junho de 2025

Homenagem de Namora a Monsanto







 O escritor português Fernando Namora exerceu a função de médico municipal de Monsanto de 1944 a 1946.  Na sua obra "A Nave de Pedra", reconhece o quanto o marcaram para sempre esses dois anos passados num local à época quase totalmente isolado, cujos habitantes eram naturalmente muito pouco receptivos aos avanços da medicina.

Por aqui, dizia, se encontra Monsanto. Onde a fraga se torna pesadelo. De longe a vi e a temi, um dorso de monstro a crescer para nós até tomar conta de quase todo o céu, num tempo de já  não sei quando e com uma personagem decerto desaparecida, esse eu bisonho a eriçar-se de espinhos, ou de frouxidão embuçada, no trato dos homens. Um eu que só tarde veio a reconhecer que é no gesto sem medo, afinal o gesto que pedia e lhe pediam, que estava o segredo da comunicabilidade.
Homens e panoramas desta estremadura beiroa, de deconfiança em alerta, nos oferecem, pois, a ideia de um viver tão duro quanto marginal. Curtido na servidão e por isso amuado. Se, em muitos sítios (a que o viajante esteja afeito, como eu o estava), ao camponês pertence o agro onde mal cabe a sua sombra mas onde planta uma esperançada tenacidade, na Beira-Baixa, na maioria dos casos, nem isso: o campónio tem de seu os braços e aluga-os para subsistir. Ou então, parte: a raia é um ir e vir no mesmo dia, o jogo de morte com a guarda compensa quem à vida dá mais préstimo que valor; e a cidade também é aceno que tenta, por muito que um jugoseja trocado por outro por vezes maior.
Talvez daí venha a terra ser desabrida, a saber-se amanhada pelo trabalho mercenário, como se pode inferir da toada dos cantares, do ritmo da dança, da melopeia da música, associados no mesmo queixume repetitivo, quase un cerimonial de condenados na espera de uma absolvição que não se decifra qual.

Fernando Namora

https://www.youtube.com/watch?v=337FcBClIBM&list=RDEMEyrSVk8xqQjr99iqrWslqA&index=1

quinta-feira, 1 de maio de 2025

Islândia 3


Origem dos Elfos

Segundo o folclore islandês cristianizado, um dia Deus visitou Eva, mulher de Adão e disse-lhe que no dia seguinte voltaria e queria conhecer todos os seus filhos. Eva ordenou aos filhos que se lavassem e vestissem a sua melhor roupa. Mas quando Deus chegou alguns ainda não estavam prontos. Deus perguntou a Eva:
- Estão aqui todos os teus filhos?
- Sim.
- São só estes? - voltou a perguntar Deus.
- Sim, não tenho mais nenhum. -  mentiu Eva.
- Aquilo que foi escondido de Mim, também será escondido dos homens. - disse Deus.
Para os islandeses essas crianças escondidas são os Elfos.








































 A Escola de Elfos, instituição de ensino em Reiquiavique, capital da Islândia, conta com mais de três décadas de existência. Entre histórias de folclore e encontros sobrenaturais, cerca de 10 mil alunos já por ali passaram desde que abriu em 1987, prontos para ouvir as histórias do reitor, Magnus Skarphedinsson. Com o seu ar bonacheirão, Magnus tem mesmo muito para ensinar, ainda que algumas das matérias fiquem ao critério do aluno: só acredita se quiser.

Antes de mais, é importante lembrar que desde tempos imemoriais  todas as comunidades contam com histórias sobrenaturais. Na Europa medieval houve quem morresse na fogueira por suspeita de ser bruxa ou até lobisomem. Do monstro do Lago Ness ao chupacabra, são muitas as criaturas misteriosas ou sobrenaturais de que ouvimos falar ao longo dos tempos.

Na Islândia, o folclore antigo é rico em histórias de elfos. E quando falamos de elfos não estamos a falar da pequenada que nalgumas histórias ajuda o Pai Natal com presentes, nem do povo que lutou na Terra Média nas histórias de Tolkien, em “O Senhor dos Anéis”. Ainda assim, há diferentes elfos a ter em conta.

“Coleciono histórias sobre experiências paranormais, fantasmas e espíritos e, ainda que nunca os tenha visto, estou convencido de que os elfos e as pessoas invisíveis, os huldufólk, existem”, contava o reitor numa recente entrevista ao britânico “Metro”.

Os huldufólk, entenda-se, são o povo oculto, os tais elfos que habitam as lendas da Islândia (e das vizinhas Ilhas Faroé). Estas crenças populares são tão antigas que certas construções islandesas foram feitas tendo o cuidado de não destruir rochas e grutas onde se acreditava que viviam.

Na verdade, estes elfos inspiram até pequenas construções como a que pode ver na imagem que ilustra este artigo. Este carinho dos islandeses não é acaso. Os elfos não são criaturas maléficas que se escondem nas sombras prontos para nos atacar. Segundo o reitor, “se alguém se perde na floresta, o povo oculto dá abrigo, se alguém está a morrer, eles dão comida, se estão doente, eles ajudam a curar”. Estes são alguns dos feitos que ao longo de séculos foram atribuídos aos elfos.

Há inúmeras histórias assim ao longo dos tempos no país, explica Magnus. Ele sabe do que fala. Segundo o próprio, já ouviu mais de 900 relatos de conterrâneos com histórias de encontros sobrenaturais para contar, além de outros 500 estrangeiros com histórias semelhantes.


As aulas na Escola de Elfos são em inglês (têm vindo alunos dos mais diversos países para assistir) e versam sobre o folclore, história e aquilo que se acreditam ser os hábitos dos elfos Aparentemente, há pelo menos 13 tipos diferentes, com os mais pequenos a começarem nos oito centímetros de altura.

As mesmas aulas versam sobre mais temas sobrenaturais, como histórias de espíritos ou trolls ou outras criaturas sobrenaturais ou eventos paranormais. Magnus, nascido em 1955, é licenciado em História da Islândia na Universidade Islandesa, a mesma instituição onde uns anos mais tarde se formou em Folclore e Antropologia.

Pedro Filipe Pina (texto com supressões)






BRASÃO DA ISLÂNDIA
De pé sobre um bloco de lava, o touro (Griðungur) é o protetor do sudoeste da Islândia, a águia ou grifo (Gammur) protege o noroeste da Islândia, o dragão (Dreki), a parte nordeste e o gigante (Bergrisi) é o protetor do sudeste da Islândia.





Território de dragões

Constava-se que,  num tempo inicial, voavam dragões famintos que devoravam tudo quanto lhes adoçasse as entranhas zangadas. Constava-se que, devastadas as coisas todas, os dragões haviam perdido a capacidade de voar e haviam parado exaustos um pouco por toda a parte. Arfavam e empederniam. Dizia-se que, de tão grandes e espessas peles, haviam radicado como montanhas de boca aberta. Passados infinitos séculos, alguns fumegavam ainda. Algumas bocas, no resto da raiva que continham, cuspiam fogo, já como dragões de pedra. Bichos gordos absolutamente feitos de pedra. Era engraçado olhar para as montanhas da Islândia e imaginar dragões acotovelados. Gigantes e cansados, mas talvez ainda ferroando-se e chamuscando-se uns aos outros por dentro. Culpados e culpando-se de terem tido tanta gula e tanta incúria.


Valter Hugo Mãe,  excerto do romance "Desumanização" inspirado na Islândia

https://www.youtube.com/watch?v=G3BU5kAMnms



Islândia 2

Borges e a Islândia


Desde a juventude, Jorge Luis Borges sentia um enorme fascínio pela beleza inóspita da chamada ilha do gelo e do fogo e pela sua literatura medieval,  fundamental para  a compreensão da mitologia nórdica.


Qué dicha para los hombres,

Islandia de los mares, que existas.

Islandia de la nieve silenciosa y del agua ferviente.

Islandia de la noche que se aboveda

Sobre la vigilia y el sueño.

Isla del día blanco que regresa

Joven y mortal como Baldr.

Fría rosa, isla secreta

Que fuiste la memoria de Germania

Y salvaste para nosotros

Su apagada, enterrada mitología…




Midgarthormr

Sem fim o mar, o peixe, essa serpente
tão verde e cosmogónica que encerra,
verde serpente e verde mar, a terra, 
circular como ela. A boca prende
a cauda que lhe chega de tão longe,
lá do outro confim. O forte anel
que nos envolve é tempestade cruel,
reflexos de reflexos, sombras, sons.
É também a anfisbena. Eternamente 
olham-se sem horror os muitos olhos.
As cabeças farejam brutalmente 
os mil ferros de guerra e os escolhos.
Sonhado foi na Islândia. Os infinitos 
mares viram-no e temeram-no entre portos;
regressará com o navio maldito
que vem armado com as unhas dos mortos.
Alta será a inconcebível sombra
sobre essa terra pálida no dia
de altos lobos e esplêndida agonia
do crepúsculo, aquele que não tem nome.
Mancha-nos essa imaginária imagem.
Vi-o no pesadelo mais selvagem.

Tradução de Fernando Pinto do Amaral

Nostalgia do Presente

Naquele preciso momento o homem disse:
«O que eu daria pela felicidade
de estar ao teu lado na Islândia
sob o grande dia imóvel
e de repartir o agora
como se reparte a música
ou o sabor de um fruto.»
Naquele preciso momento
o homem estava junto dela na Islândia.

Tradução de Fernando Pinto do Amaral


quarta-feira, 23 de abril de 2025

Islândia 1


Viagem através do Parque Natural de Thingvellir


Paisagem no mesmo Parque


Tocando na Placa Norte-Americana... 





A caminho do Parque Geiser
 

Aguardando o momento em que o geiser expele água quente a 35m


Uma das muitas quedas de água


Consegue-se passar por detrás desta queda de  água


Outra queda de água


Na pequena cidade de Vik (800 habitantes)


A praia de areia preta de Vik


Ainda a praia de Vik


Casas na cidade de Vik


Extensões infinitas de campos de lava


No Verão estes campos ficam cobertos de flores


Viagem com vista para o glaciar Vatnajokull


Encontram-se muitos turistas pelo caminho


Lagoa glaciar de Jokulsarion com os seus icebergs coloridos


Um dos muitos "diamantes" da Diamond Beach


As famosas colunas de basalto na praia de Reynisfjjara


Em Reykjavik a Hofdi House


Harpa, um  modelo inovador de arquitectura  adequado a todo o tipo de eventos


Escultura em forma de barco viking  Solfarid


Interior da igreja católica


Igreja católica


Parlamento


Escultura "O burocrata desconhecido"


O lago Tjorn 


A catedral luterana de Reykjavik inspirada nas colunas de basalto
 




sexta-feira, 21 de março de 2025

A propósito de guerras

Salvador Dali



Receita para fazer um herói

Tome-se um homem,
Feito de nada, como nós,
E em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda, irracional,
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim.

Serve-se morto.


Reinaldo Ferreira

https://www.youtube.com/watch?v=VMbJ3bQUPRs





Maria Helena Vieira da Silva "Naufrágio"


 Elegia I

Dest'arte me chegou minha ventura

a esta desejada e longa terra,

de todo o pobre honrado sepultura.

Vi quanta vaïdade em nós se encerra,

e dos próprios quão pouca; contra quem

foi logo necessário termos guerra.

Que üa ilha que o rei de Porcá tem,

que o rei da Pimenta lhe tomara,

fomos tomar-lha, e sucedeu-nos bem.

Com üa armada grossa, que ajuntara

o vizo-rei de Goa, nos partimos

com toda a gente d'armas que se achara,

e com pouco trabalho destruímos

a gente no curvo arco exercitada;

com mortes, com incêndios, os punimos.

Nela nos detivemos sós dous dias,

que foram para alguns os derradeiros,

que passaram de Estige as águas frias.

Oh, lavradores bem-aventurados!

Se conhecessem seu contentamento,

como vivem no campo sossegados!

Dá-lhes a justa terra o mantimento,

dá-lhes a fonte clara a água pura,

mungem suas ovelhas cento a cento.

Não vêm o mar irado, a noite escura,

por ir buscar a pedra do Oriente;

não temem o furor da guerra dura.

Vive um com suas árvores contente,

sem lhe quebrar o sono sossegado

o cuidado do ouro reluzente.


Luís de Camões (texto com supressões)




Júlio Pomar



A guerra, que aflige...

A guerra, que aflige com os seus esquadrões o Mundo,
É o tipo perfeito do erro da filosofia.

A guerra, como tudo humano, quer alterar.
Mas a guerra, mais do que tudo, quer alterar e alterar muito
E alterar depressa.

Mas a guerra inflige a morte.
E a morte é o desprezo do Universo por nós.
Tendo por consequência a morte, a guerra prova que é falsa.
Sendo falsa, prova que é falso todo o querer-alterar.

Deixemos o universo exterior e os outros homens onde a Natureza os pôs.

Tudo é orgulho e inconsciência.
Tudo é querer mexer-se, fazer coisas, deixar rasto.
Para o coração e o comandante dos esquadrões
Regressa aos bocados o universo exterior.

A química directa da Natureza
Não deixa lugar vago para o pensamento.

A humanidade é uma revolta de escravos.
A humanidade é um governo usurpado pelo povo.
Existe porque usurpou, mas erra porque usurpar é não ter direito.

Deixai existir o mundo exterior e a humanidade natural!
Paz a todas as coisas pré-humanas, mesmo no homem,
Paz à essência inteiramente exterior do Universo!

Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)






Malangatana


Porém, o amor existe

O medo,  neste século, já não é um  produto artesanal.
Os aviões bombardeiros
- ou, em tempo de paz, , as falências imprevistas -
impressionam pela tecnologia posta em acão.
Hoje, passa-se fome de modo bem mais moderno
do que no século VIII, por exemplo.


A vida é isto: a lua está mais próxima 
de alguns  que treinam para astronautas
que um prato quente da boca de outros homens.
É aquilo a que podemos chamar: distâncias
relativas. Por mim não me queixo.
Estômago cheio, boas pernas, boa cabeça.

As paixões, exageradas ou não, deveriam
ser protegidas como certas espécies animais
em risco de extinção. É que até o amor ficou pálido
depois de certos povos maltratarem, de modo organizado,
conjuntos de pessoas
que falavam outra língua e lembravam outro passado.
Os homens não são seres vivos que mereçam
especialmente o amor. Porém, o amor existe.

Gonçalo  M. Tavares