domingo, 28 de outubro de 2018
O Poema Pouco Original do Medo
O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos
O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
a tua voz talvez
talvez a minha
com certeza a deles
Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)
O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos
Sim
a ratos
Alexandre O'Neill
(pintura de Graça Morais)
https://www.youtube.com/watch?v=Kt2AB7QeaY0
quarta-feira, 17 de outubro de 2018
Uma questão de tempo
Do outro lado da casa, as crianças brincam com o tempo
que corre para que elas não brinquem com ele. Na casa
ao lado, um cão vê o tempo passar e ladra-lhe
para ele fugir como se fosse um ladrão. Na rua, o mendigo
pede a toda a gente a esmola de um tempo, e toda
a gente diz que não tem tempo para lhe dar. No café, peço
uma chávena de tempo, curto e bem forte
porque não tenho tempo para dormir, mas
a meu lado há quem peça uma chávena bem cheia
de tempo para que o tempo demore a beber. Há
quem corra por falta de tempo, e o tempo vai
atrás dele para o apanhar. No metro, a rapariga
atravessa o cais, devagar, como se tivesse mais tempo
do que todos os que contam o tempo para
não lhes descontarem no tempo. E quando me perguntam
se tenho tempo, olho para o relógio, como se ele
estivesse cheio de tempo, e peço que tirem de dentro
dele todo o tempo, e que o esvaziem até ao último
segundo, para eu ficar com tempo para
ver quanto tempo passou.
Nuno Júdice
(pintura de Álvaro Lapa)
https://www.youtube.com/watch?v=HQap2igIhxA
quarta-feira, 10 de outubro de 2018
Rua de Camões
A minha infância
cheira a soalho esfregado a piaçaba
aos chocolates do meu pai aos Domingos
à camisa de noite de flanela
da minha mãe
Ao fogão a carvão
à máquina a petróleo
ao zinco da bacia de banho
Soa a janelas de guilhotina
a desvendar meia rua
surgia sempre o telhado
sustentáculo da mansarda
obstáculo da perspectiva
E havia a Dona Laura
senhora distinta
e sua criada Rosa
que ao nosso menor salto
lesta vinha avisar
que estavam lá em baixo
as pratas a abanar no guarda-louça
O caruncho repicava nas frinchas
alongava as pernas
a casa envelhecia
A minha mãe fazia-me as tranças
antes de ir para a escola
e dizia-me muitas vezes
Não olhes para os rapazes
que é feio.
Inês Lourenço
aos chocolates do meu pai aos Domingos
à camisa de noite de flanela
da minha mãe
Ao fogão a carvão
à máquina a petróleo
ao zinco da bacia de banho
Soa a janelas de guilhotina
a desvendar meia rua
surgia sempre o telhado
sustentáculo da mansarda
obstáculo da perspectiva
E havia a Dona Laura
senhora distinta
e sua criada Rosa
que ao nosso menor salto
lesta vinha avisar
que estavam lá em baixo
as pratas a abanar no guarda-louça
O caruncho repicava nas frinchas
alongava as pernas
a casa envelhecia
A minha mãe fazia-me as tranças
antes de ir para a escola
e dizia-me muitas vezes
Não olhes para os rapazes
que é feio.
Inês Lourenço
(arte de Lourdes Castro)
https://www.youtube.com/watch?v=WGF2Us9DHfQ
https://www.youtube.com/watch?v=WGF2Us9DHfQ
domingo, 30 de setembro de 2018
Um buraco de luz para Deus
Ligo o braço longe a uma estrela
A lua límpida sobe no céu
Um anel passa através de outro anel
Procuro o tempo e encontro a passagem
Procuro a morada e encontro o relento
Às vezes mesmo sem voz
Às vezes até sem palavras
Silêncio que Deus me deu
És uma forma de luz
Tornas sagrado o que existe, centelhas da verdade
Somos o barro, somos poeira
O teu vento errante nos leva
Eu sei existe em mim, mesmo no fundo de um poço
Um buraco de luz para Deus
Um nome escrito no céu
E não sei o que fazer e rezo
Rezo sem saber dizer o quê e a quem
Mas rezo
Rezo o chão e a flor, o pão e a fome,
Rezo o branco e a dor
Nas letras do teu nome
Há um buraco de luz
sexta-feira, 21 de setembro de 2018
Quinto Poema do Pescador
Eu não sei de oração senão perguntas
ou silêncios ou gestos ou ficar
de noite frente ao mar não de mãos juntas
mas a pescar.
Não pesco só nas águas mas nos céus
e a minha pesca é quase uma oração
porque dou graças sem saber se Deus
é sim ou não.
Manuel Alegre
(arte de Zhang Kechun)
https://www.youtube.com/watch?v=sCQpycvSF24
segunda-feira, 17 de setembro de 2018
A Selva
A subida lenta, quinze dias bem puxados, de Belém ao Paraíso, impacientava Alberto, moroso em adaptar-se ao meio.
O "Justo Chermont" ora enfiava pelos estreitos "paranás", tão ocultos nas margens que o barco dir-se-ia penetrar na própria floresta, ora despachava para o céu os rolos do seu fumo em pleno centro do rio. E então, se os olhos se dirigiam para a frente, a saída tornava-se tão misteriosa como o fora a entrada - tudo selva, selva por toda a parte, fechando o horizonte na primeira curva do monstro líquido (...)
Muitas vezes, numa só hora, tornava-se necessário andar da margem direita para a esquerda, no centro do rio ou juntinho à terra, porque o canal tinha caprichos de serpente e era versátil como uma mulher. Onde, há um ano, a sonda marcava profundidade para a maior quilha do Mundo, já hoje se erguia uma praia, esplêndida para a desova das tartarugas no Estio. A terra inconsistente, que se greta nos barrancos, parte e cai aos milhares de toneladas, abalando a solidão com o pavoroso rumor do seu mergulho, cria todos os dias novos obstáculos à marcha dos navios. Mas nem isso, nem os grossos troncos desprendidos das margens nativas, que flutuam na corrente e amolgam ou furam as proas descuidosas, perturbavam os pilotos do Amazonas, subtis na previsão das dificuldades e com memória de prodígio (...)
Nem sempre se divisava a outra margem e, se surgia, era um simples pespontado negro, na linha do horizonte. Nas árvores mortas que arrastava, preguiçosamente, pousavam belas pernaltas, algumas adormecidas sobre uma só perna e o bico longo semioculto no colo; outras, de longas asas abertas, ensaiando um voo que nunca tinha início - um voo que era como uma saudação litúrgica ao Sol radioso dos trópicos.
Ferreira de Castro
(pintura de Manuel Lapa)
https://www.cm-oaz.pt/cultura.353/casa_museu_ferreira_de_castro.1499/casa_-_museu_ferreira_de_castro.a4142.html
Nem sempre se divisava a outra margem e, se surgia, era um simples pespontado negro, na linha do horizonte. Nas árvores mortas que arrastava, preguiçosamente, pousavam belas pernaltas, algumas adormecidas sobre uma só perna e o bico longo semioculto no colo; outras, de longas asas abertas, ensaiando um voo que nunca tinha início - um voo que era como uma saudação litúrgica ao Sol radioso dos trópicos.
Ferreira de Castro
(pintura de Manuel Lapa)
https://www.cm-oaz.pt/cultura.353/casa_museu_ferreira_de_castro.1499/casa_-_museu_ferreira_de_castro.a4142.html
sábado, 8 de setembro de 2018
Lembrança da ria de Faro
Dunas atrás da casa
gafanhotos cor de
madeira cardos cor de areia
ao fim da tarde,
barcos na água rósea
onde a cidade, em frente à casa, cai
De madeira caiada a
casa está
sobre a areia, que escurece quando
a maré devagar desce na praia
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