domingo, 24 de novembro de 2019

A casa

         

         Um sossegado alento na penumbra de madeira.
          A casa adormeceu e está viva numa tranquila pulsação.
          Oiço um leve martelar de teclas de sombra.
          Um prato de cobre brilha verticalmente na obscuridade.
          A mesa é redonda e limpa como um círculo de
          harmonia.
          Numa parede flutuam arabescos cintilantes.
          O tempo segrega sílabas de argila e espuma.

          António Ramos Rosa
          (retirado de livro ilustrado com fotos de árvore de Belgais
               da autoria de Paulo Gaspar Ferreira)



            https://www.youtube.com/watch?v=QW94FTi60Fk

domingo, 17 de novembro de 2019

Poema

               Feita de sol é a carne que nos veste
            Os ossos, que são feitos de  luar.
            E a nossa alma é sombra
            A sonhar e a pensar, conforme é dia
            Ou noite, pois em nosso pensamento
            Esplende o sol.
            Mas ao luar é que se expande 
            O nosso dom fantástico, esse voo
            Sem fim do nosso ser
            Que ultrapassa as estrelas                  
            E alcança além do espaço a eternidade.
            E o infinito, além do espaço,
            E Deus, além dos deuses.

            Teixeira de Pascoaes
            (poema e desenho)
            https://www.youtube.com/watch?v=bWRy9ejTNe8

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Dormir na floresta


Pensei que a terra
se lembrasse de mim, tão
carinhosamente me recebeu de novo, ajeitando
as saias escuras, com os bolsos
cheios de líquenes e sementes. Dormi
como nunca, uma pedra
no leito do rio, sem nada
entre mim e o fogo branco das estrelas
a não ser os meus pensamentos e estes flutuavam
leves como mariposas por entre os ramos
das árvores perfeitas. Ouvi
toda a noite os pequenos reinos a respirarem
à minha volta, os insectos e as aves
que trabalham na escuridão. Toda a noite
me levantei e caí, como se estivesse dentro de água, a lutar
com uma fatalidade luminosa. De manhã
tornara-me em alguma coisa melhor
umas doze vezes pelo menos.


Mary Oliver
Mudado para português por Francisco José Craveiro de Carvalho
Pintura de Graça Morais
https://www.youtube.com/watch?v=lv_4xmh_WtE

domingo, 3 de novembro de 2019

Os Poetas

             


              Os Poetas
              Debruçados e mudos
              Esticam os arcos.
              Cegos
              Raramente acertam
              No alvo.

              HN       
                    https://www.youtube.com/watch?v=24avjNTjasY
                    Arte de Manuel Casimiro

             

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Brueghel e o fascínio



Lembro-me de estar no Museu do Prado e de me encontrar com O Triunfo da Morte, de Brueghel.
Não poderia descrever aqui o caos generalizado daquele mundo atacado por esqueletos ceifando, degolando, enredando, afogando, enterrando homens e mulheres de todas as classes e idades e profissões - que, em pânico, gritam, fogem, tentam ignorar ainda o massacre. Não é sequer uma dança macabra, mas a mais simples chacina. Um Apocalipse sem Jerusalém celeste. 
Há muito que ver. Num canto, um esqueleto mostra a um rei, vestido de arminhos e armadura, uma ampulheta inexorável. Algures, outro esqueleto apalpa as mamas de uma nobre roliça, enquanto um terceiro serve uma sopa de tíbias e caveira. Noutro canto, dois amantes trocam melodias e palavras de amor - logo imitados por um esqueleto, cheio de cínica complacência.
Por que não consigo desligar os olhos deste quadro?
Primeiro, porque é o maior jogo de massacre que conheço. Sem paciência: a morte tem de ser toda - e já - e não há desculpas para ninguém!
Em segundo lugar, porque há nessa sincronia tantas histórias citadas, tantas anedotas e provérbios e exegeses bíblicas e paródias e ironias e antíteses! O olhar fascinado não pára de desvendar micro-narrativas.
E finalmente: porque é tão divertido!
O quê, a morte?
Sim, claro, a morte.

Pedro Eiras
Pintura O Triunfo da Morte de Brueghel (Pormenores)
https://www.youtube.com/watch?v=S_nswb0Mh14

domingo, 20 de outubro de 2019

De repente...

                     

                 De repente, sem o teres esperado, a flor
                 nasce a partir do seu centro. Depois recebe
                 as cores, a flexibilidade da haste, o círculo
                 à volta de cada pétala. Aproximas-te mais
                 ao sentires o perfume e reparas na forma
                 que tinha sido por ti há muito imaginada,
                 o seu anel. É aí que tudo existe. Outras folhas
                 nasceram; por vezes estremecem. Segura-a
                 nos teus dedos. Está alta para tu a colheres.

                 Fernando Guimarães
                              Arte de Lourdes Castro
                              https://www.youtube.com/watch?v=fqKN4qKO0BM

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

As bolas de sabão

                       

                          As bolas de sabão que esta criança
                          Se entretém a largar de uma palhinha
                          São translucidamente uma filosofia toda.
                          Claras, inúteis e passageiras como a Natureza,
                          Amigas dos olhos como as coisas.
                          São aquilo que são
                          Com uma precisão redondinha e aérea,
                          E ninguém, nem mesmo a criança que as deixa,
                          Pretende que elas são mais do que parecem ser.

                          Algumas mal se vêem no ar lúcido.
                          São como a brisa que passa e mal toca nas flores
                          E que só sabemos que passa
                          Porque qualquer coisa se aligeira em nós
                          E aceita tudo mais nitidamente.

                           Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)
                           Pintura de Manet
                           https://www.youtube.com/watch?v=xyFF_5a02g4