domingo, 19 de junho de 2016

A ilha da Madeira




Agora conheço melhor a Madeira. Passado o primeiro entusiasmo, vejo tudo a frio. Esta ilha é um cenário e pouco mais - cenário deslumbrante com pretensões a vida sem realidade e desprezo absoluto por tudo que lhe não cheira a inglês. Letreiros em inglês, tabuletas em inglês e tudo preparado e maquinado para inglês ver e abrir a bolsa. Eles saem dos paquetes -  e logo o Funchal se arma como um teatro - secos, graves, dominadores; elas saem do mar vestidas de noiva, de bengala na mão e blusa de croché, passeando a sua importância e as suas libras esterlinas em terreno conquistado. Sentado à porta do Golden Gate, ouço o apito do vapor, e já sei o que se vai passar: muda a armação como um cenário de mágica. Surgem homens com grandes chapéus de palha para vender bordados, colares falsos de coral, cestos de fruta; iluminam de repente as lojas, e segue o desfile de tipos. Mas as máquinas de bordo dão o sinal e uma hora depois esta vida fictícia desapareceu e tudo reentra no isolamento e no silêncio.
Mas a Madeira é também uma estação de Inverno com alguns magníficos hotéis. Esta terra quase tropical, cujo calor, no Verão, a viração modera, com excepção dos dias de siroco, em que não se respira, no Inverno é uma delícia. Ar balsâmico, temperatura morna. Imaginem o que será vir de Londres, da borrasca, do frio que enregela, do negrume que enerva e enche as almas de tristeza e de lama, e, com dois dias de vapor, chegar diante da jóia voluptuosa que voga suspensa no azul... O porto é panorâmico. Sabe a fruta o ar fino que entra pelos pulmões - doze graus e o sol doirado caindo a jorros. Há dias tão lindos que a gente tem medo de lhes tocar - imóveis, e de um azul magnético. A vida não tem peso, tudo parece um sonho. As noites são de magia. Rosas por todo a parte. O sopro tépido vem dos montes. E isto bebe-se devagarinho, aos golos - entra nos poros e nas almas e enlanguesce-as. Quem pode acreditar na morte, no frio horrível e eterno, diante da natureza, que nos estende os braços cheia de flores e de perfumes em pleno Inverno?...
Vejamos, porém, o cenário pelo lado de trás... Turismo, álcool e açúcar têm degradado o povo e enriquecido alguns felizes da terra. O homem do Funchal, em contacto com o progresso, transformou-se em hoteleiro, engraxador e chauffeur.
Ora, entre o turismo que tem dado semelhante resultado e a hospitalidade, não hesito em dizer que detesto o turismo, e adoro a hospitalidade. Adoro a antiga Espanha, durante muito tempo rebelde à exploração, recusando a adaptar-se à vontade alheia, e a satisfazer os estrangeiros com um sorriso falso, até ao ponto de mudar usos e costumes para lhes ser agradável. O estrangeiro entra sempre num país de turismo como num hotel - como quem paga. Ora uma nação não deve ser um hotel - e Deus nos livre que o seja!

Raúl Brandão

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