domingo, 5 de fevereiro de 2017

O imperador



A voz nascia na tribuna, vinha do alto, ou ia par o alto lançada pelas bocas de um exército de altifalantes apontados às nuvens do inconcebível; era uma voz cercadora, que estava atrás e à frente e por cima também; voz maior, VOZ, emoldurada em palmas. Alinhados em esquadrões, entre sol e estandartes, os peregrinos esticavam o pescoço a procurar seguir-lhes o rastro pelos caprichos das alturas. Percebiam e não percebiam, pouca coisa, quase nada, dados os seus fracos conhecimentos do dialecto dê-erre, mas não era motivo para se afligirem: iriam compreender mais tarde quando o padre e a professora Minha-Senhora os reunisse lá na aldeia para fazerem o comentário próprio. Aí seria o Discurso em tradução livre; por enquanto tinham o dos altifalantes, que era todo ao vivo e que os cobria com pensamentos de cometa. 

            «APOIADO!»
            «VIVA O IMPERADOR!»

Estavam tontos de luz, cegos de tanto mirar o nada, o azul celestial, à procura do traço da Voz. Pressentiam que ela tinha alcance de profecia e assim como assim conformavam-se. Por cima deles desenhavam-se loopings de gramática austera, retóricas e artifícios estrelados, conclusões de pancada alta - como trovões.

             «APOIADO! APOIADO! APOIADO!»
             «IMPERADOR! IMPERADOR! IMPERADOR!»

Até que no dia D (D de Dia e de Discurso, observe-se) aconteceu a viragem que ninguém esperava.
Que fique bem gravado: a Decisão teve lugar no dia D por ocasião do último Discurso, o fatal. Nunca mais. Dali em diante passava a dirigir-se a outras audiências - às europas e baldrocas, aos espíritos de ouvido apurado e aos continentes na generalidade. E, não era tarde nem cedo, em duas penadas já apontava para novo rumo:

               «ATENÇÃO, MUNDO! BONS DIAS, PLANETAS!»

O pior é que mundos e planetas andavam fora do comprimento de onda do Imperador porque nem um obrigado lhe mandaram. Pelos vistos, não tomaram conhecimento, ou não quiseram. Desconheciam, pensavam para lá.


José Cardoso Pires

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